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quinta-feira, 28 de maio de 2015

Manual de sobrevivência ( 38)

Por que raio temos de ir  ao cemitério? Só vou por causa do falatório no lugar. Por mim nunca mais lá punha os pés. Gostava dela, mas tudo passou, quero seguir com  a minha vida.

O Popol-Vuh descrevia o Xibalba como um lugar  terrível comandado  por doze deuses. Era onde os mortos não descansavam, atormentados por julgamentos, testes etc. Nós decidimos o contrário.
Os vivos julgam-te, mas  a morta perdoa-te. Seja como for,  ainda bem que não  a cremaste.

quarta-feira, 27 de maio de 2015

Manual de sobrevivência ( 37)

Tenho de ter sempre o controlo das coisas. Caso contrário fico  insegura. O problema é que as coisas estão difíceis, o controlo é impossível. Estou a começar a sentir-me desesperada.

As coisas rolam com alegre  indiferença pelas nossas necessidades. Tens de examinar a fonte dessa sede de controlo, porque arriscas-te a fazer a espargata  nas rectas paralelas de Plutarco e o infinito ( onde elas se encontram)  é capaz de demorar.
Repara, a vontade de algum controlo é natural. Por exemplo, a hora de deitar, o tipo de escova de dentes, a marca de sumos que bebes. Já a passagem do tempo pelo corpo,  o curso que o teu filho vai escolher e  o dinheiro que ganhas são bolachas de uma lata que não é só tua. A medida é o alvo.
Quando as coisas ficam difíceis, experimenta substituir o controlo pela cabeça  fria. Ou seja, deita fora tudo que não é vital: o que sobrar é a tua cidadela. A escolha é feita deixando de lado  o que não podes...controlar.


 

domingo, 24 de maio de 2015

Manual de sobrevivência ( 36)

Não confio em ninguém. É horrível, mas é  a verdade.

A verdade é horrível? Parabéns. Se fores ao Carlos de Oliveira ( em alguns aspectos das descrições femininas, o nosso Bioy Casares)  descobres como  Capula ficou sem fala quando Glória lhe disse que ia ter um filho dele, mas depois caminhou alegre sob a chuvada grossa.
Quanto à confiança, isso é outro pirilampo. Deixando de lado  as parlapatices psicoanalíticas sobre a ferida narcísica  e o  defeito fundamental, talvez seja um problema de interpretação. 
Se não confias em ninguém, não confias em ti: é óbvio. Por que carga de água os outros haveriam de te mudar a fralda?

Nova configuração

Os leitores passarão a dispor de um email para que possam abordar aspectos que não queiram ver publicados  na caixa de comentários. A conversa passará a ser noutros moldes.
Julgo que assim o blogue  adquire mais flexibilidade e cumpre melhor.

terça-feira, 19 de maio de 2015

Manual de sobrevivência ( 35)

Sinto-me  desinteressada das coisas boas. Já não me dão prazer, acho-as enfadonhas. Culpo-me disto, é verdade, mas não posso evitar.

Ele há coisas mais fáceis de resolver. Julga-se que são as grandes tragédias as mais difíceis de arrumar, mas não é assim. Estas  resolvem-se por si: ou cais ou segue sem frente. Já a fadiga de Cápua implica uma actualização permanente.
Uma linha para explorares, recomendação do meu amigo Epicteto ( Encheiridion, LIV): os prazeres mais repetidos são os que  raramente nos proporcionam a maior satisfação.

segunda-feira, 18 de maio de 2015

Manual de sobrevivência ( 34)

É muito mau  antecipar o prazer? Quero dizer, em ficarmos alegres antes da coisas acontecerem?

Nenhuma disposição nossa afecta o curso dos acontecimentos nos quais não participamos, mas que nos podem beneficiar. Se fores entregar o euromilhões convencido de que vais ganhar, isso não interfere no sorteio.
Calculo, no entanto, que te referes ao perigo da desilusão.  Se o remédio fosse esperar o pior, os casamentos no altar seriam muito divertidos. Já em alguns funerais valeria  a pena filmar a cara das pessoas quando o morto ressuscitasse.

sábado, 16 de maio de 2015

Manual de sobrevivência ( 33)

Como posso ter a certeza de que é que com ela que quero ficar/ Por que razão me abandonou ele de repente?

Julgo que a  vida é literatura  no sentido em que tudo pode ser inventado sem servir para nada. Desse modo, as interrogações sobre as nossas certezas valem o que lhes queremos oferecer. Fiquem com um pedacinho  do  discurso  que Valery fez, em Julho de 1927, quando foi eleito para Academia francesa ( substituiu Anatole  France):

 Entre les amateurs d’une beauté qui n’offrait pas de résistance et les amants de celle qui exige d’être conquise, entre ceux qui tenaient la littérature pour un art d’agrément immédiat, et ceux qui poursuivaient sur toute chose une expression exquise et extrême de leur âme et du monde, obtenue à tout prix, il se creusa une sorte d’abîme


sexta-feira, 15 de maio de 2015

Manual de sobrevivência ( 32)

A depressão é diferente da tristeza, dizem vocês. Para mim é igual: o meu corpo não me obedece, não encontrei  o  amor, não espero nada. Vou vivendo.

Se o teu corpo te tivesse sempre obedecido, terias  nascido para este mundo cão?
Sobre o amor, dou-te Anna Langfus. Torturada pela Gestapo, assiste à execução do marido e  morre  de enfarte aos 46 anos. Dizia ela que não podemos usar  palavras humanas para descrever  uma realidade que não está à altura  dos homens.
Não percebes? O amor não é para ser encontrado, é para ser perdido.


quarta-feira, 13 de maio de 2015

Manual de sobrevivência ( 31)

É um problema, sinto-me angustiada.  Ele quer fazer na cama as fantasias todas, com, digamos, adereços,  e isso faz com que eu me aborreça, parece que estou num filme.

É bem verdade, uma infecção essa: a indústria chegou ao sexo. Os  escravos do taylorismo sexual desconhecem  o this kiss, the forerunner of the most delicious pleasure, como escreveu Casanova ( cap IX), depois de dar um, muito especial, à marquesa enquanto o cardeal dormia  a sesta. 
Ensina-o com paciência, mas com firmeza, já que ele só fez a telescola. Para reforçar  a aula, convida uma amiga e certifica-te de que ele assiste bem sentado  e com atenção.



terça-feira, 12 de maio de 2015

Manual de sobrevivência (30)

O que é que  eu consegui? Tenho 45 anos e estou habituado ao meu trabalho, à minha mulher, aos mesmos programas de televisão, à hipoteca da casa. O que é isto?

Bem, o trabalho é fácil: despede-te. Num instante  experimentarás  novas sensações. Nos tempos em que havia guerras, sob  o comando de arquiduques ou cabos de guerra, a diversão estava assegurada.
Quanto à mulher ( se não engordou), convence-a a encontrar  uma antiga paixoneta no facebook e encoraja-a. Ganha ela  e ganhas tu, que arranjas uma desculpa para te pirares.
Não pode ser? Gostas do teu trabalho e da tua mulher? Ora, estás é habituado a ti.

domingo, 10 de maio de 2015

Manual de sobrevivência ( 29)

Desde que me divorciei, a relação com a minha filha está estranha. Parece que sou eu o culpado.
Bem, pega numas tretas antigas da antipsiquitaria, mistura-as com Zizeck e verás que a culpa é sempre da comunidade subjugada pelo capitalismo. Assunto arrumado, vamos ao que importa.
Sou um optimista nato, acredito no laço humano. Se a relação com tua filha era boa antes do divórcio, continuará boa. Ou seja, se antes a garota não era um fardo nem uma distracção, nada mudará.
Por outro lado, se já antes da separação  eras para  a miúda o tipo que estava sempre muito ocupado ou mal-disposto, compreenderás  decerto que agora  as antigas obrigações são para ela uma nuisance.

sexta-feira, 8 de maio de 2015

E é isto: uma vida com a heroína e com o sax

Manual de sobrevivência ( 28)

Não consigo deixar de pensar nele; o amor é isto, não é?
Receio bem ser incompetente. O único amor que conheço é  a tradução cultural  do instinto: entre pais e  filhos. Os seguidores de Cristo compreenderam-no muito bem
O resto é sexo, diversão ou Baumgarten aplicado à pele, aos sorrisos imortais e ao olhar que diz mais do que consegues esquecer.

quinta-feira, 7 de maio de 2015

Manual de sobrevivência ( 27)

Não sei como sentir-me segura. Tudo parece, é, frágil. Como se vive assim?
Nasceste  de um  saquinho membranoso  e cortaram a ligação ao teu pequeno mundo com uma tesoura. A fragilidade do caos é trompeuse.
Dividir essa angústia é um bom começo. Olhas para um mar enorme e sentes-te pequena, manda a vulgata. Esqueces, porventura, que com um pequeno passo desfazes a onda.
Achas isto ingénuo? Então és mais sólida  do que julgas.

terça-feira, 5 de maio de 2015

Manual de sobrevivência ( 26)

Não consigo fazer as coisas, não sei o que consigo fazer.
Já experimentaste  fazer  coisas com o que não consegues fazer? 
Não fiques confuso. Por exemplo, não consegues ir às aulas, estudar, fazer dieta, dizer à tua miúda que a amas estupidamente, não é? Então podes ir trabalhar, fazer desporto, dizer à tua miúda que não consegues dizer-lhe que a amas estupidamente.
O que não conseguimos fazer é uma força fabulosa: impede-nos de fazer o que não queremos.

Manual de sobrevivência ( 25)

Tenho maus pensamentos, sou vingativa em imaginação.
Ainda bem. A imaginação é como o sonho: estamos lá, mas com uma coroa de plástico na cabeça.
Ainda por cima, esses maus pensamentos guardam-te  de más acções. Estobeu atribui a Antifonte ( não é líquido):  Quem não desejou nem experimentou o que é mau e torpe não é prudente.
Descansa,  tens coisas para  dominar, não terás surpresas.

domingo, 3 de maio de 2015

Manual de sobrevivência ( 24)

Tenho um pensamento que não me sai da cabeça. Dizem que sou obsessiva.
A máquina não aprecia lealdades. Exceptuando ganhar dinheiro, ser o melhor e eternamente jovem, todas as outras obsessões são proibidas.
Bem, é verdade que pode ser incomodativo. Não penses em mais nada a não ser  deixar de pensar nisso.

Manual de sobrevivência ( 23)

Vou ao cemitério de vez em quando, mais por obrigação do que por outra coisa. A falta que ela me faz é aqui em casa, foram quarenta  anos juntos. 
Evita as fotografias. Estou convencido de que há lá sempre um diabo, sobretudo  nas emolduradas.
Esta é a situação  que nos devia autorizar à psicose. Servir-lhe  uma salada de maçã e queijo fresco, ir à  praia, dar-lhe  a mão e borrifá-la com água bem salgada. À noite,  deitar a cabeça na almofada ao lado dela e sorrir.
A alternativa é lavar os  dentes todos os dias e receber os elogios pela compostura.