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quarta-feira, 27 de novembro de 2013

A trégua


Os casais em ruptura relembram as primeiras desavenças porque lhes é impossível recordar os primeiros beijos. A memória da relação é de elefante kali.
Esta operação é comum a outras faunas. No trabalho que te aborrece, nos filhos que fazem o seu caminho, etc. A ruptura obriga-nos a extrair  do passado tudo o que possa justificar o presente do abandono. É uma política  de proximidade, melhor  lembrada  pelo conselho de um dos maiores: one is not duchess/ a hundred yards from a carriage.
Fico sempre fascinado pelas partes desavindas que no espaço do tempo revivem as tais  desavenças originais e pecaminosas, mas continuam a dormir a centímetros um do outro. Ou que trocam presentes no Natal como se o outro presente pudesse ser cancelado.
O animal humano é o único capaz de matar o amor. Chama-lhe trégua.


domingo, 24 de novembro de 2013

Desespero

Na longa lista de Petrarca  não há uma categoria especificamente dedicada ao desespero. Julgava conhecer o manual de cor e eis  quando reparo que, numa das consultas,  o Mestre  responde a quem se queixa do ruído e dos modos dos  cães do vizinho. Explica ele : Quem aprende  a suportar os incómodos causados pelas pessoas  não temerá os provocados pelos cães. Estes serão sempre menos  numerosos, menos ferozes e menos enraivecidos do que aquelas.
O desespero é das emoções mais difíceis  de gerir numa terapia ou em aconselhamento. A pessoa está pouco receptiva à racionalização, está defensiva, é, digamos, um gato eriçado. Diante de um cão. Seja pela falta de dinheiro ( Petrarca  tem  a teoria da Troika sobre a pobreza: deixa-a entrar e serás virtuoso), pelo abandono amoroso, pela doença ou pelo luto.
Costumo, depois dos preliminares ( empatia, escuta, fuzilamento de lugares comuns), ir por um caminho que  aprendi comigo e com outros desperados: põe ao lado do  que o desespero te tirou,  tudo o que ele ainda te pode  tirar.

quarta-feira, 20 de novembro de 2013

A que espécie pertences?


Um estudo cheinho de humor. E tu, procrastinas?
Quando mudei de casa, há quase três anos,  mantive dois caixotes de tralhas num canto da biblioteca. A minha mulher desesperava. No outro dia esvaziei um. Disse-lhe que os Hopi, que vivem no tempo polissíncrono,  uma vez demoraram cinco anos até pôr em tribunal uma petrolífera que feriu a reserva índia. Respondeu-me que estimava muito, mas que não éramos Hopi.
Eu sou. Há coisas do passado que ainda não conheci, há coisas do futuro que já esqueci.

segunda-feira, 18 de novembro de 2013

Incómodos


C., 70 e poucos:
Dr.,
A perda de faculdades incomoda-me muito, quer a nível do físico quer do foro intelectual e mental. E o medo da morte e do que pode ir acontecendo até então. Gostava de conviver e agora tenho dificuldade por grande insegurança. Sozinha não saio de casa. Ontem terá sido a 1ª vez: a senhoria mora do outro lado d 1 caminho que, no meio desta espécie de quinta, a atravessa  e em cada extremo tem 2 estradas. Fui mais ou menos até 1/3 para falar c/ a sra. e voltei mas sempre com medo de cair. Ponho tudo em causa e só tenho a certeza que não estou bem e que incomodo as pessoas que não têm nada que me aturar. E o que ouvimos( "os grisalhos, a C.Lag - até gosto de ouvir Adriano Moreira) revolta mas não ajuda nada. Dr. Filipe, agradeço a sua ajuda, nem imagina quanto. Até breve.


Esta senhora foi colega de escola de uma famosa figura do 25 de Abril. Talvez por isso ainda se interessa por política. Temos trabalho pela frente, porque a sua lucidez faz com que ela veja a perda das faculdades como um assalto ao quartel da liberdade. O problema é que ela tem de aceitar a ajuda de quem a ama em vez de achar que incomoda as pessoas.
Neste mato não há espaço para promessas. Não há terceiras vias nem alternativas. Vamos aproveitar a energia e a inteligência desta senhora para fazer com que ela compreenda que envelhecer  combina bem com receber. Mimo dos outros, portanto, laço humano.

sexta-feira, 15 de novembro de 2013

Fé, religião e terapia


O António Damásio disse uma vez que o velho princípio whatever works, baby é um bom princípio quando se ajudam pessoas. A fé, a crença religiosa, pode ser um factor? Claro. Se não quiserem comprar o artigo  têm  aqui uma digestão  no  NYT. 
Ter fé num tratamento ( químico ou de psicoterapia, como é referido nos artigos) é bom, sim, mas não me parece o principal. Ao fim de todos estes  anos e vendo muita gente que por regra nunca entraria no gabinete de um psicoterapeuta ( lavradores, gaspiadeiras, pastores, muitos velhos),  a dimensão religiosa mais importante parece-me outra.
O desespero, um dos alvos desse enorme terapeuta ( até no sentido literal) que foi Cristo : Somos perseguidos, mas não abandonados; abatidos, mas não destruídos ( 2 Corintos4:8-9).
No Educação para a  Morte conto a história ( pp45)  de uma senhora de quase oitenta anos que perdeu a filha única, quarentona e solteira.  Era uma  mulher religiosa, falámos muito  sobre a esperança e fé durante a quimioterapia da filha.  Na primera sessão depois da morte, perguntei-lhe em que pé ficaram as coisas com Deus. Respondeu-me: No mesmo de sempre. Sempre acreditei e durante estes meses terríveis nunca me deixou sozinha.
O pedantismo e os complexos mal resolvidos podem miar,  mas  é  aqui que, da minha experiência ( este assunto tem de ser abordado assim), as pessoas com fé vão buscar um um ramo de cheiros ao deserto.

quarta-feira, 13 de novembro de 2013

Chorinho


Há o do Pinxiguinha, o melhor, claro, e há o outro. Dizia Borges que o não ser querido, o estar doente, são outras formas da dor de dentes. Por falar em raiva de dentes: existe uma linha das teorias evolucionistas que diz que o choro humano é um comportamento adaptativo . Quando choramos  ficamos bebés e isso destila empatia na plateia. As mulheres e os homens que choram nas discussões amorosas, a aluna que chora  no exame oral, o adolescente que chora na repreensão paterna. Muito bonito, mas... e os  que choram sozinhos?
Deixemos de lado os cinéfilos, passemos às noites. Conheci uma mulher que estava grávida  e chorava a meio da noite. Tinha perdido um filho, o que explica a aparente  contradição. De uma forma mais mística,  dir-se-ia que transmitia ao futuro bebé uma verdade de lã: redime-me.

sábado, 9 de novembro de 2013

Inês de Castro e a kairologia


Usa-se no futebol, na descrição dos debates políticos, em todo o lado em que acontece o que devia acontecer. Dioníso de Helicarnasso achava que não. Ninguém conseguiu  definir a arte da oportunidade, nem mesmo Górgias de Leontinos, que terá sido o primeiro a escrever sobre o assunto. Traduzindo em passe vite a ideia de Dionísio:  dependendo a arte do kairos  de uma situação determinada, julgada pelos olhos de quem a vê e ocorrendo num instante preciso, que, por sua vez,  é o produto de momentos anteriores e  coevos, é impossível definir a arte.
A altura certa para dizer a verdade, o momento  benigno para abandonarmos, o segundo preciso em que desistimos. Arrisco contrariar Dioníso ( espero que no instante certo): domina a arte da oportunidade quem duvida do futuro.
O tempo desempenha um papel essencial. Lembro-me de uma mulher. Trintona, engraçada, amarrada um marido desleixado,  um café de aldeia em comum, dois filhos.  Enamorou-se de um tipo que lavava os dentes e tinha facebook. Discutimos a situação várias vezes, a coisa arrastou-se  durante  um ano. Um dia entra-me pelo gabinete com cara de quem foi ao pote das bolachas. O marido morrera de repente. O problema: agora não conseguia juntar-se com o outro. Remorso, culpa, fosse o que fosse.
Lembro-me que estiquei as pernas, olhei para  a janela do gabinete e resumi:  Agora  é tarde, Inês é morta.

sexta-feira, 8 de novembro de 2013

Ordem unida e ordem natural

Direita, falhar, marche. Como se digere o fracasso? Há uma ordem unida psicológica?
Preocupo-me mais quando são personalidades bipolares ou quando existe uma fraqueza associada: um problema de saude, uma perda recente etc. Isto porque vejo o fracasso como uma falange que nos sitia. A guerra é inevitável, a logística essencial.
Quando falhamos,  perdemos meios  e territórios. A primeira tarefa é incluir o fracasso na ordem natural das coisas. A segunda é recuperar o moral. Há gente que não consegue a primeira ( não aceita), há gente que não sabe fazer a segunda.
Aceitar o fracasso não significa aceitar  o que fizemos para fracassar. Significa aceitar que,  tudo considerado - as nossas acções, as dos outros, o ambiente-, o resultado não podia ser outro. A inteligência não serve só para tirar boas notas ou defender teses académicas. Acima de tudo, a inteligência é uma ferramenta para compreender.
Recuperar é recuar. Entender que, como estamos  e decidimos, não somos suficientemente fortes. Recuar para o porto que conhecemos bem ( Séneca) , restaurar o cordame e os instrumentos de  navegação. Visitar amores, comer, beber e dormir. Sonhar.
Se somos  depressivos, o fracasso é visto como natural. Se somos bipolares, o fracasso é inaceitável (na fase maníaca), se não temos amor-próprio ( os psis dão-lhe o nome de auto-confiança), ficamos cheios de pena de nós.

quarta-feira, 6 de novembro de 2013

A carne ou a vida


Estas chitas pequenitas, dentro de dois anos, vão atingir os 114 km/h. É para  isso que a mãe trabalha, é isso que lhes vai garantir a carne. Também sabem ficar quietas: o Henrique Galvão teve uma que dormia aos pés da cama. Sobreviver é dinâmica.
Uma mãe que todos os  dias diz que  a filha é  uma molenga e um pai que  chama idiota ao filho todas as manhãs seriam despedidos da guilda de chitas criadoras. Os papás que vivem as suas vidas de frustração  através dos filhos, incensando-os e perdoando-lhes tudo, idem. Criar é fazer, não é?
Como restaurar? Difícil. Não os posso virar contra os pais, tenho de os distanciar da  intoxicação. O trabalho terapêutico acaba por ser uma  segunda criação. Mostrar-lhes  as ferramentas que têm de saber utilizar. O João dos Santos dizia que estamos  cá para fazer falhar a educação que recebemos. Eu também conheço um tipo que teve seis filhos  e cinco  têm  a profissão do pai. Não somos chitas...
Não temam, não se trata de relativismo agudo. O que o João dos Santos dizia é que, chegando ao fim da adolescência, temos de processar o legado e escolher: com o que ficamos, com o que rejeitamos. Acrescento que  a proporção é variável, mas a condição mental é essa: escolhe, ganha autonomia, separa-te. Depois podes voltar e até comer castanhas assadas  com os velhotes. Isso não conseguem as chitas.

domingo, 3 de novembro de 2013

Do prazer

Lembro-me de uns idiotas que nas caixas de comentários de um jornal criticavam uma professora que se queixava dos cortes: o pecado da mulher era ter o cabelo arranjado. Insidiou-se um anátema: só pode protestar quem não se der ao prazer. Nenhum prazer.
Isto leva-me, se bem me lembro, como dizia o grande Vitorino, ao meu arquivo de prazeres proibidos. À cabeça, uma doente cuja história já contei aqui.  A morrer devagarinho de um carcinoma espinocelular ( tumor no nariz), o seu maior prazer era receber  a filha mais nova que chegava da escola. Lanchar leite com bolachas. Os dos velhos  carregados de medicação que não dispensam um copito também me alegram: é sempre vigoroso ver a vida a estrebuchar. O mais importante é, no entanto, esta anomalia histórica que organiza a nossa vida. Não se pode ter prazer se estivermos nos  braços da crise ? Pode  e deve.
O prazer é constitucional. O seu tribunal está na amígdala cerebral e não meteu férias. Ele  até é obrigatório. Uma das minhas  recomendações habituais a alguém que está na mó de baixo é que compense. Uma hora  extra de sono, uma cozinha por arrumar, um livro cuja  releitura estava  a reter. É uma escolha pessoal. Eu antecipo. Se sei que vou ter um dia de cão, ou se fui surpreendido por um dia de chacal, tiro da caverna um presunto bísaro, abro  um Papafigos e acendo uma Partagas. Amanhã? Os estóicos  não pensam nisso.  Tira o sono.