email para contactos:
depressaocolectiva@gmail.com

quinta-feira, 30 de maio de 2013

Decisões

Os processos de decisão  dizem bastante sobre a personalidade e sobre a reacção às alterações do meio. São coisas diferentes porque, por vezes, as alterações ambientais  são de tal ordem que temos  de mudar para decidir. Tenho estado com pessoas, que conheço  há muito da consulta, e que agora tomam decisões  que contariam a maneira como  habitualmente  funcionam. Outras permanecem no seu registo. Os resultados diferem muito, pelo que prefiro analisar apenas o processo de tomada da decisão. Dois  conselhos  para falhar menos:

1) Não encare a  decisão como definitiva.
Isto pode parecer paradoxal, a provavelmente até é, mas é o melhor seguro contra  a precipitação e o medo. Numa separação amorosa, ou quando estamos a pensar em emigrar, se estabelecermos um período exprimental,  alargamos a zona de incerteza, ou seja ( nas teorias do poder como atributo) mantemos  uma margem de manobra razoável.
Depois, como dizia o presidente Franklin D. Roosevelt, uma  boa decisão pode ser melhorada, uma má pode ser revertida ( um bom conselho para os governos...)

2) Decida em função do que é mais importante  para si.
Este pode parecer óbvio, mas, infelizmente não é. Conheço mulheres que abortaram contra  a sua vontade e pela vontade de um pai furibundo ou de um companheiro egoísta, já ajudei pessoas que deixaram para trás desejos profissionais  por receio de incompreensão dos pais, dos amigos, do mentor ( orientador de doutoramento, por exemplo).
Se falhar, falhou tentando o prémio máximo, se acertar não fica com uma sensação de frustração  duradoura.

O ar do tempo, hoje, pode obrigar  a mudar a forma como costumamos decidir? Sim. No cerco de Estalinegrado, os soldados  e oficiais  soviéticos foram obrigados a abater miúdos russos que faziam pequenos recados para os nazis, porque por vezes esse recados forneciam informações  vitais sobre  as posições soviéticas. Alguns militares fizeram-no  para não serem abatidos pela NKVD, outros pelo sentido de dever e solidariedade para com os camaradas. As cartas ( dos oficiais) enviadas para casa ( interceptadas mas agora disponíveis) mostram a angústia da decisão.
Num contexto de grande volubilidade ambiental, a melhor decisão é aquela  que cumpre os dois conselhos referidos, mas que inclui um extra: decida em função das transformações que o ambiente lhe vai impor depois da decisão.


quarta-feira, 29 de maio de 2013

Aos que têm fé

E não aceitam o estoicismo. Bem, apenas um bocadinho, e enviesado, porque o assunto é-me caro e não cabe num texto. Enviesado  porque parto da crítica de Samuel Johnson, num texto de 1750, publicado no The Rambler, aos estóicos, crítica muito comum nos cristãos.
Johnson não apreciava o que ele entendia ser  o desprezo soberbo dos estóicos pela dor e pelas amarguras ( pobreza, fome, exílio, morte de amigos etc). Se a dor não é um mal, não vale a pena ensinar a resistir-lhe e isso será um caminho para  a rendição. Não é esse o entendimento estóico, mas por hoje fiquemos  com  o ( bom ) conselho  de Samuel: lutar sempre, desistir nunca.
Quando estiveres desesperado, foge da impaciência, mas não confundas a paciência e a submissão com a cobardia e  a indolência. Johnson  dirige-se aos que acreditam em Deus. A esperança, claro, é a arma do nosso crítico. E a esperança  significa que tudo depende de Deus, que espera de ti que resistas e aceites. Ou, como ele  recorda: bless the name of the Lord, wether  he  gives or takes away.
Para os incréus há sempre o estoicismo, mas fica para mais tarde.


terça-feira, 28 de maio de 2013

Dolente

O estudos de Bonanno sobre a resistência  à perda e à dor ( pode fazer o download aqui) apontaram a personalidade prévia hipertímica e a boa rede de apoio como os factores essenciais. Ou seja, pessoas que entendem que se pode aprender com as coisas más, que apostam nas relações  pessoais  e que , por via disso, se rodearam de um círculo amoroso, ultrapassam melhor  as derrotas e as tragédias.
Há mais. Crescer com a tragédia e com a derrota  implica incluí-las no roteiro da nossa vida. Não se trata , portanto, de optimismo. Do meu ponto de vista até está mais próximo do realismo depressivo. A vida é uma longa história de sofrimento, avisava Schopenauer, aviso que afixei  na badana de um dos meus livros. Et pour cause.
Podemos  prever, na situação actual, quais as pessoas que vão resistir melhor? O jogo é apertado, porque envolve factores demasiado centrados no ambiente económico e social. Pelo que tenho registado, a dose certa de  realismo depressivo ( ver as coisas como elas são) combinado com a aprendizagem permanente pode funcionar.
O problema é que  a realidade está muito pesada e a aprendizagem com as situações perigosas torna-se água  num vaso de areia. Dito de outro modo, os psicólogos são traídos pelas constantes e não pelas variáveis.

domingo, 26 de maio de 2013

O orgulho custa os olhos da cara.

Já há senhoras de idade a pedir dinheiro para a senha do autocarro ou, em alternativa, a aceitar boleia de alma caridosa. Não é um assunto rodoviário.
Imagine o leitor uma vida simples. Nunca bebeu um vintage , nunca esteve num resort de luxo algarvio, nunca andou de avião. Fez costura para fora, enviuvou pelos  sessenta, tem os filhos longe. Está com maleitas suficientes para entreter  uma turma de internos de medicina, vive com um gato, chove-lhe no quarto. Agora, fora  a farmácia  (a conta pode chegar facilmente a metade da pensão, mesmo com a comparticipação), água, luz e uns carapaus, sobram as pernas para andar.
Coloque-se por um instante nos sapatos da velha senhora. Pode dar-me dinheiro para uma senha sff?

quinta-feira, 23 de maio de 2013

Fazia-lhe o mesmo a si


Há histórias notáveis de resistência.  A., 56anos, é uma  senhora  que viveu  a cuidar dos filhos e da fazenda ( horta), o marido era pedreiro.  Ele está sem trabalho há quatro anos, sem subsídio há quase dois, sem se poder mexer muito há um: L5 e L6  esmagadinhas  e as outras vértebras também  não se sentem bem. Dois filhos. Um na Alemanha  há muito tempo, o outro foi para lá agora, deixando cá  a mulher e um bebé.
A. é corada, seca de fastios, voz decidida. Que não, que não se deixa abater. É verdade que agora o lema de Vale de Azevedo   - um escudo é um escudo - é para ser levado à letra. Não, não é de fome que falamos. De outras coisas: não pode arranjar os dentes, não pode ir ao privado operar-se ao pulso ( túnel cárpico), não compra roupa faz este Natal um ano.
A. não se deixa abater porque já viveu no inferno. Tinha outro filho que morreu num acidente de mota com apenas dezoito anos. Perguntam talvez: o que tem uma coisa a ver com a outra? Ela responde: Não passei por aquilo, e ainda passo, Deus sabe, para me ir agora abaixo por causa do que andam  a fazer ao povo.
A. tem uma rotina. Todos os dias vai a casa de uma vizinha  ( que é como quem diz,  de outro lugar,  a mais de  um quilómetro) de quase noventa anos. Lava-a, dá-lhe um jeito na casa,  reforça-lhe  a dieta que as senhoras do Centro deixam todos os dias. Pergunto-lhe, provocador,  o motivo. Olha-me com um desprezo de veludo: Fazia-lhe o mesmo a si.

quarta-feira, 22 de maio de 2013

O realismo depressivo é suposto poder apreender a realidade como ela é. Não interessa agora se habita os distímicos, os bipolares etc. Digamos que será ver as coisas como elas são. Que vantagem possui? A de não nos iludirmos, está bem, mas uma outra: a de nos preparamos para o que aí vem.
Tenho observado na consulta que  personalidades bem ajustadas, equilibradas, estão a reagir com mais dificuldade à crise. Tinham feito planos, tinham trabalhado para eles, o futuro apresentava-se garantido como qualquer televisor com selo de fábrica , como escrevia o Mário-Henrique Leiria.
Por outro lado, personalidades ciclotímicas, afundadas muitas vezes em humores negativos, parecem encontrar na tempestade uma comfirmação dos seus medos. Como é que isto as ajuda? Porque, em certos casos, sentem-se em consonância com ar do tempo: como se estivesse justificada a sua tristeza, como se não fossem, afinal, anormais.

segunda-feira, 20 de maio de 2013

O arquivo deserto


Um autor  esquecido, Miguel Rovisco, em Cobardias ( Ed Ática 1988) , avisa: a tarefa mais urgente de um adulto não está em recordar-se de todos os ensinamentos do passado, mas em descobrir o meio mais eficaz de esquecê-los. As situações de ruptura, social ou emocional, abrigam bem  o aviso de Rovisco.
Pessoas que conheço, que   há quatro, seis, dez anos, sabiam o que recordar , que  arquivaram as suas experiências e construiram uma base de referências, vêem-se hoje na posição de esquecer tudo. Ao contrário  dessa grande lenda que é o stress pós-traumático ( lenda, porque não queremos esquecer, queríamos  era era que as coisas se tivessem passado de outro modo) , esta rasura não é causada  pela emoção. É uma escolha racional: o que aprendi não me serve agora de nada.


Onde está o leitor neste mapa ?
Bem, sendo um mapa, calculo que já terá estado em vários  territórios. Eu mantenho-me junto do rio, embora às vezes apanhe umas ondas. O truque é saber qual a zona que frequentamos  mais, não é?

domingo, 19 de maio de 2013

Parece

"Tento isolar-me para que as pessoas não se apercebam, levanto-me cerca das seis da manhã e sigo rumo por zonas por vezes longínquas e volto ao final da noite sempre ao mesmo sítio”, relatou.
Para trás deixou a mulher, um filho e uma família que lhe chama “maluco”, mas Marcos Ribeiro, que se apresenta de barba feita e roupa limpa, luta contra o desalento e mantém-se optimista sobre a escolha de destino".

Temos aqui uma fórmula de cientista perverso.  O indivíduo que sai parece fugir, mas também parece lutar. Chegado a Londres , como Édipo entre os coloneus ( não se preocupem, não é o Édipo Rei, é a outra, Édipo em Colono), parece maníaco para uns, persistente para outros. Por fim, luta contra o desalento mantendo-se optimista. Parece uma contradição. Não é.
As situações-limite potenciam comportamentos que parecem contraditórios se a pessoa não se enfiar na cama ou na negação. Como somos apanhados por ventos laterais e imprevistos, as nossas melhores  decisões parecem exageradas ou tolas.
O instinto de sobrevivência não foi desenhado para aquela hora em que chegamos a casa e calçamos  as pantufas.

sexta-feira, 17 de maio de 2013

Apartheid mental: os deprimidos-saudáveis



A representação comum, estereotipada,  da alegria. Grupo, saúde física, natureza. Se colocasse aqui uma equivalente  da depressão escolheria a  imagem de uma pessoa com olheiras e enroscada na cama com as mãos na cabeça. Estas representações têm em comum o código corporal. a tradução corporal dos estados  mentais. O que acontece  quando essa tradução não existe?
Há pessoas deprimidas que nunca  disseram aos outros que se sentem deprimidas e bem: os outros não acreditariam. São pessoas que riem, trabalham, dormem bem, convivem, fazem desporto, não tomam antidepressivos. Então e podem estar deprimidas? Podem. E muito.
O que a vulgata não conta é que o tom depressivo pode conviver com um estilo de vida dito  normal e até  muito agradável. Isto acontece porque  alguns  de nós  orientam o pathos depressivo para fora da corrente quotidiana, mas há mais. A tradução comportamental resulta da falta de controlo. Por exemplo, quando estamos encolerizados e nos portamos como tal. Os deprimidos-saudáveis exercem uma  vigilância apertada sobre o afecto depressivo. O medo, a angústia, o deslace  da vida , são mantidos  em regime de apartheid do quotidiano normal. Dir-se-ia que um contrato social se estabelece: podes ser deprimido se não  pareceres um.
Muitas e variadas razões  podem ser responsáveis. Há pessoas que deprimiram em função de acontecimentos, outras arrastam  fastios de infância mal resolvidas, algumas exprimem heranças. Seja como for, todas resolveram casar com a depressão sem se deixar dominar por ela. Por vezes, estes deprimidos-saudáveis retiram algum prazer em dominar a melancolia e  o pessimismo . Outros conseguem arranjar nichos ecológicos para  a depressão brincar à vontade. Falaremos disto mais tarde: o realismo depressivo?

quinta-feira, 16 de maio de 2013

Outra troika

Fome, desemprego  e solidão. No continente culpam uns, na Madeira culpam outros. Tanto faz. Estas  três palavras parecem juntar-se com harmonia. Lido assim, sem pôr  nomes e caras, a coisa engole-se Tiro  a fome - quem vem à consulta consegue comer - e fico como os dois ases.
A situação mais comum é a da pessoa entre os 30 e os 50 que ficou desempregada. Se for, por exemplo, mulher e divorciada, a conversa azeda. Os homens vão para os copos,  têm sempre uns biscates ( sobretudo os daquelas zonas arraçadas de cidade) , uns tijolos a  assentar para um primo, umas voltas com o tractor do vizinho. Elas não.
L., tem 48 mas parecer ter 60. Divorciada há dez anos,  escriturária e semi-contabilista, um filho já crescido  noutro ponto do país, duas relações que acabaram muito mal. Not a charmed life. A empresa vai fechar. O que se diz a uma pessoa assim? O pudor resguarda-me do "tem de lutar", do "ainda é nova" etc. Tem uma amiga, mais nova,   nas vinhas para os lados de Pau. Óptimo, uma  aberta, recosto-me e passo de trivela. Ela não precisa de dizer nada. É esta a minha recompensa? À beira dos 50, sozinha, ir trabalhar na agricultura para Farnça? Para quê?
"Para quê?" é a pergunta certa.   A devastação inspira estas reflexões de condenado. Noutro  planeta  chamam-lhe mobilidade empreendedorismo.

"Um nevoeiro na cabeça"

Félicité, a criada da deprimida  Emma Bovary, tenta consolá-la dando-lhe o exemplo da filha do pescador,  que também andava tão triste que os médicos diziam que tinha um nevoeiro na cabeça. Bem, o remédio da filha do pescador foi o casamento, mas, como sabemos via Flaubert, essa não poderia ser  a terapia de Emma.
A depressão de Emma parece  a milhas das depressões ordinárias que  hoje nos caem na consulta. R., 34 anos, dois filhos, apareceu-me certa vez a pedir ajuda. Operária, tinha ( e tem) o marido emigrado à força em Angola. O clínico geral disse-lhe que estava deprimida e medicou-a. Estava  e não estava.
R. trabalha numa fábrica ( que até está bem), cuida dos terrenos e do gado ( em muitas zonas do país, gado pode significar apenas galinhas) e tem de fazer de pai e mãe, para além de não ter, como é óbvio, empregada doméstica ( uma senhora que vem ajudar, nas imorredoiras palavras de Francisco Louçã). Estava estoirada e esse estoiro deprimiu-a. O nevoeiro na cabeça  não vinha tanto do cansaço, mas  sobretudo da auto-exigência: R, achava que devia aguentar.
O ponto de contacto entre Emma e  R. é este: para o que fomos feitos? No caso de R., a crise levou-lhe o marido para longe, de sopetão, e ela  desconfiou de que talvez não estivesse à altura da situação. A capacidade de ajustarmos  as nossas expectativas às nossas capacidades é sempre trabalho forçado, mas a crise, interrompendo planos, logo,  o ajuste gradual, transformou-o numa tarefa de bestas.

quarta-feira, 15 de maio de 2013

Em voo de pássaro:
Traditionally, suicide prevention efforts have been focused mostly on youths and older adults, but recent evidence suggests that there have been substantial increases in suicide rates among middle-aged adults in the United States Pelo  que leio no nosso INE, não há uma variação excepcional nos últimos dois anos, o aumento reportando-se aos últimos  quinze.
As pessoas de meia idade ( 40-50) são mais sensíveis à crise? É uma altura delicada por vários motivos. Por um lado é suposto ser a melhor - conclusão de planos, melhoria económica, segurança.Por outro, somos, talvez, mais retrospectivos:  fomos  as escolhas que fizemos. Fizemos. Antes.
Desemprego, perda de poder de compra, medo, angústia pelo futuro dos que criámos,  todos estes factores se juntam aos normais: envelhecimento, primeiras doenças de desgaste, cansaço relacional/conjugal  etc. Não é de espantar que essa faixa etária esteja muito fragilizada.

Índices

Abro com uma nota do Ricardo Gusmão, que foi meu colega. A nossa melancolia tem uma tradução psiquiátrica. Não sei.
Nestes últimos anos tenho observado uma coisa surpreendente. Doentes que eram depressivos clássicos-leves, ou seja, elaboravam mais um pessimismo do que uma depressão endémica, estão a reagir com notável panache.
Outros, que na história clínica antecipava  dificuldades com a situação actual ( problemas financeiros, desemprego dos filhos etc) evoluem como se picados por um instinto de sobrevivência.
Teremos de ver, comparar, alargar a lente: a leitura  psi é manifestamente insuficiente para perceber o que se está  a passar.