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sexta-feira, 28 de fevereiro de 2014

Axis stoa



 "Estou a morrer devagarinho, eu que sempre fiz as coisas depressa".
O'Neill morreu , de facto, devagar. Outros vivem muito devagar. Não vão longe.
Enquanto não esperares nada do dia de amanhã, não mereces o dia que passou.

terça-feira, 25 de fevereiro de 2014

Lonjuras


O que faz a distância às relações? Não faço ideia, mas a proximidade pode matar. A distância, mesmo com esta, necessita de proximidade para fazer o trabalho.
A emigração tem obrigado a distender a comunicação. Conheço casais que agora comunicam mais na rede do que ao vivo. Mudou muito? Nem por isso, as coisas de que falamos são as mesmas.
Se não mudou o que se comunica ( os miúdos, as contas, as doenças da sogra), mudou o que não se comunica. A distância cria uma visão menos enevoada do papel do outro - não é mesma coisa ficar sem o apêndice ou sem um rim -, mas sobretudo da relação em si.
O que não se comunica é o que entendemos não ter dignidade para ser posto na mala diplomática. As relações  correm o risco de assentar na troca de informação ou nas flores secas ( adeus beijnho, adeus adoro-te, adeus até amanhã). O pathos da relação - a tensão, o toque, o olhar - é espremido na Bimby electrónica. Sai comestível, mas  sem graça.

domingo, 23 de fevereiro de 2014

O amor salva se não vier o 112



Tantas histórias que vou coleccionando, dava para mais um volume. Simmel dizia que o século XIX  descobriu um indivíduo que é um fantasma como o átomo. Por vezes, lendo as mensagens das pessoas, ouvindo-as, olhando para elas, para os olhos  em riste como quem desafia,  tendo a concordar.
Tanto Medeia  como Fedra confessam que  a paixão por Jasão e Hipolito, respectivamente, foi mais forte  do que  a razão ( os antigos  gregos, para quem não sabe, tinham a paixão em pouca conta) e daí as trágicas conclusões. É  a razão aborrecida? Um anti-Viagra?. Nem pensar.
Como mostra a prostituição de luxo, o bom sexo dispensa o amor. Dir-me-ao que falta o resto, o morrer é estar o dia todo inteiro sem te ver. Sim, no comércio sexual, mas não necessariamente na ligação, na corrente.
Quem melhor  a definiu, a corrente, foi o  mestre La Rochefoucauld: pode amar-se uma mulher ( ou um homem) toda  a vida, amando partes diferentes dela ( ou dele). Isto, claro, demite o elemento essencial do amour fou:  a orgia narcísica que consiste em ter alguém aos nosso pés.
Orgias por orgias, prefiro as da prostituição de luxo:  altamente técnicas e sem ter de partilhar os livros e fimes favoritos.


sexta-feira, 21 de fevereiro de 2014

Ansiedade e treino ( III): Nixon e balelas


A ansiedade de base pode  sobreviver em personalidades que desconhecem ataques de pânico, rituais compulsivos  e restante parafernália da agitação. É necessário despsicologizar, despsicanalizar, despsiquiatrializar. Gore Vidal disse, a propósito das centenas de psicanalitas e psicólogos - amadores, de ocasião e profissionais  -que chegaram a analisar  o puré de batata que Nixon recusava na infância: Não inflijam esse esterco de cavalo freudiano ao Nixon, ao meu Nixon.
Muitas vezes a ansiedade de base é um sintoma de saúde mental. Tenho em consulta gente que perdeu o emprego, tem um filho preguiçoso ou  cuida de pais demenciados. A ansiedade constante e basal é a  reacção de uma personalidade normal ( homoclítica) a factores ambientais  e relacionais agressivos.
Ainda assim, o treino é necessário. Uma estratégia razoável é evitar a sobrevalorização do factor agressivo. Todos sabemos que quando estamos  preocupadíssimos com uma avaria no automóvel deixamos  de pensar nela se  um filho adoece. Isto lembra, já que falámos em Nixon, a primeira regra de Chotiner ( seu conselheiro de campanha) : as pessoas não votam em alguém, votam contra alguém. Da mesma forma, a nossa ansiedade  natural pode ser atenuada se valorizarmos outras preocupações.
Imagino a reacção do leitor: então substituimos uma dor de cabeça por outra? Sim. O objectivo não é impingir ( diria Vidal) pensamento positivo e outras balelas. O objectivo é anular a excessiva atenção que um factor agressivo nos está a captar. E, de caminho, às vezes até percebemos   que as coisas não são assim tão complicadas.

terça-feira, 18 de fevereiro de 2014

Diferenças resistentes

Muito bom artigo sobre  as escalas que medem a resilience. Aconselho a colegas, mas interessados em geral também podem aproveitar.
Eu uso uma escala muito mais tosca. Por exemplo:

a) Os pais divorciam-se. O miúdo mantém o bom aproveitamento escolar e faz as asneiras normais de um miúdo.  Resistente.
b) Quarentona, mastectomia radical direita, o tipo larga-a nessa mesma semana.. Refaz a vida com outro e vai para Moçambique viver. Resistente.
c) Sabe-se gorda, azar ao amor, anos de luta contra isto. Vai estudar, arranja um emprego compatível, continua sozinha. Resistente.
d) Doença gravíssima, quarentinha, internamentos vários. Aceita ainda mais trabalho, recusa a queda da vida sexual, goza com o pagode. Resistente.

O pai de Borges, num longo  Verão de Montevideu , pediu-lhe que reparasse em tudo : nos quartéis, nos talhos,  nas igrejas,  porque tudo isso ia desaparecer no dia em que se esquecessem  as  diferenças.

segunda-feira, 17 de fevereiro de 2014

Colonização


O Melo Antunes tem uma frase de chupeta: Não há descolonizações perfeitas pela boa e simples razão de que não colonizações boas. Nas  mentais ocorre o mesmo.
Chamo colonização mental ao processo através do qual um adulto toma conta de outro. Pode ser  um pai de um filho, uma mulher de um marido  e por aí fora. O essencial é que o colonizador despoja o colonizado da  capacidade de decisão e da independência  de movimentos. Said distinguia a colonização do imperialismo pelo eixo da presença: o colonizador nunca integra, só utiliza. E aqui a cauda abana o cão.
Na maior parte dos casos a colonização mental assenta na clásica superioridade de meios. O pai que prolonga na vida adulta do filho o magistério de autoridade, vantagem financeira e tradição. O filho chega a adulto subjugado  à condição de prótese narcísica do progenitor.
Mais enevoada é  a colonização amorosa. Uma mulher  pode perceber que dispõe daquilo que o homem não consegue obter sem ela. A partir daí, a vida dele é uma  ilusão de autonomia batida numa sólida dependência que o afasta  das suas raízes ( o house nigger).

sábado, 15 de fevereiro de 2014

Mais sonhos


Duas contribuições de leitores:

1) (...)  Mas quase todas as noites, num estado algures entre o sono e a vigília, (eu chamava-lhe penumbra) acordava aprisionada no meu corpo. Visitavam-me coisas. Sentavam-se na minha cama, por vezes tocavam-me no pescoço e asfixiavam-me só por instantes. Eram maus. Conversavam comigo. Durante todo o tempo eu lutava para me conseguir libertar, mas nem um músculo conseguia mexer. Depois iam embora e eu estava livre. O horror parava no momento em que acordava.

2) Há meses andava meio zombie, frustrada e sem saída - sonhei com todas as casas onde já morei (fisicamente não eram, mas eram no sentimento), e que estavam todas disponíveis para mim ou para quem eu as quisesse oferecer. Bonito, não é? 

Conheço a pessoa que os demónios visitavam, não conheço a segunda, mas posso  tentar traçar  uma fronteira comum. Robert & Zadra têm investigado  e publicado muito. Têm aqui um pequeno resumo da diferença entre o sonho mau e o pesadelo. O primeiro sonho é um lucid nightmare ( daí a penumbra que a  leitora menciona), o segundo parece inócuo até ao momento em que reparamos na introdução: "meio zombie, frustrada e sem saída". Muitas casas disponíveis? A solidão é um pesadelo.

quinta-feira, 13 de fevereiro de 2014

Pesadelos


Exceptuando o mais simpático sportinguista, na noite de terça para quarta-feira, por que motivo temos pesadelos? E qual é pior: o nocturno ou o diurno?
É possível que sejam mecanismos de defesa  herdados do tempo em que  um dente-de-sabre  podia irromper a qualquer altura caverna adentro. Talvez. Drogas, legais  e ilegais ( muito  haveria  a dizer sobre Cocteau  e Quincey) e  álcool podem, claro, produzir bom cinema, mas há mais.
Interessa-me sobretudo como arquivamos os pesadelos. Explicando melhor. Uma mulher vive com um homem cinquenta anos. Ele morre. Ela sonha com ele. É um pesadelo ou uma benesse? Uma mãe perde um filho ao volante de uma curva: só no pesadelo o pode beijar.
Ainda mais interessante. Sonhas que a casa ardeu e a família também. Acordas e afinal está tudo bem. Foi um pesadelo, sim, mas é arquivado na categoria dos pesadelos bons: os que poderiam ter acontecido mas não aconteceram.


segunda-feira, 10 de fevereiro de 2014

A rede


Faz um ano, comecei a desenvolver uma rede de apoio à distância. Pessoas que são de longe e/ou que têm dificuldades financeiras, pessoas que estão a viver  crises excepcionais, gente que está em treino para combater  comportamentos específicos. O apoio à distância complementa ( nunca substitui....) o trabalho ao vivo e a cores.
Na segunda categoria ( crises excepcionais) o sucesso da rede é mais evidente. O tempo que passei  a disponibilizar ( gratuitamente, claro), uma média de duas horas/dia, tem sido bem empregue. A qualquer altura do dia ou dia da noite ( sim, sou morcego) , às vezes em tempo real, ter uma resposta, uma palavra, uma abordagem diferente, parece fazer bem às pessoas.
Outra toca. Sou no teclado mais suave do que ao vivo ( nos blogues é igual), reconheço, e isso tem contribuído para o bom efeito produzido, mas não é o mais  importante. O tempo que as pessoas têm quando escrevem obriga-as, e permite-lhes, a  pensar melhor. E quando pensamos melhoramos um bocadinho.

domingo, 9 de fevereiro de 2014

O correio de Timor


Diz que hoje vem uma. Talvez sim. Talvez não. O medo é tantas vezes uma previsão e se é uma previsão, por que não o tratamento do vergonhosamente  esquecido Ruy Cinnati? Ora vejam ( Ante-Manhã, 1967):

"Pai nosso que estás no céu.
Santificado...."
É possível que o correio
venha hoje de Timor
Salve!

As tempestades previstas expulsam a angústia e instalam o medo.  Por exemplo:  estás doente  e vais fazer exames: angústia. Dizem-te que estás mal e podes não viver muito tempo: medo. Interessante é comparar com as bonanças previstas: o que desencadeiam?
Talvez tenhas um aumento de salário ou de categoria. Adivinharam: ansiedade versão expectativa, esssa chamuça  congelada. Foste admitido na Confraria da Morcela: felicidade.
Cá por mim prefiro as tempestades. Habituei-me a elas , no meu porto e nos dos outros ( saravá! para alguns dos que aqui vêm) e o correio sempre pode chegar de Timor.


sexta-feira, 7 de fevereiro de 2014

Da ira : body language em italiano

Pozzecco é um ex-basquetebolista e  actual treinador de renome.
A ira raramente nasce de um raio. Vejam o filme com atenção. A linguagem verbal é o menos importante. Começa por dizer que defrontou uma equipa muito forte, refere  a pontuação do cameponato, explica que os seus rapazes  fizeram uma viagem cansativa;  depois diz que sabe perder e ganhar, continua dizendo que sempre saiu de cabeça erguida  no final dos jogos, para terminar em  en rage, queixando-se de lhe terem faltado ao respeito ( o treinador adversário).
A linguagem não-verbal é muito mais sumarenta. Notem que ele vem de papel e três pontos. Como um condómino com contas a ajustar com os restantes. Os olhos  são pardais, as narinas abrem ( efeito da noradrenalina) como as de um touro. Está  aquecer. Uma hesitação:  coça o cocoruto da cabeça, sinal universal de compromisso desconfortável  ( reparem quando o vosso interlocutor/a referir de passagem que comprou um Mercedes ou cita Heidegger).
Minuto 1.50: Faz uma pausa:  está a anunciar um princípio de vida. A pausa é acompanhada por um sorriso amarelo. Minuto 2.14: notem  a boca. Os maxilares  mexem-se  como se fossem culatras que introduzem uma silver tip na câmara da arma. Quando a ira sai já é tudo muito visível.
O aspecto mais notável é a fala das mãos. Até ao minuto 2.52, estão entrelaçadas. A mão direita começa soltar-se, aponta ( nomeia, ameaça)  e termina  num murro sobre  a mesa. O minuto 2.52 é aquele em que Pozzecco começa  a falar  de quem lhe faltou ao respeito.

quarta-feira, 5 de fevereiro de 2014

Ansiedade e treino ( III)

Têm  esta, completa, e podem descarregá-la sem custos e esta, igualmente  gratuita.  Há muitas, umas mais completas do que outras, mas sinceramente nunca lhes  bispei grande utilidade do ponto de vista do doente.
Quem sofre  regularmente de qualquer forma de ansiedade e das suas declinações ( registo fóbico, compulsivo, depressivo etc) não precisa de uma escala para saber que sofre. Por que razão as divulgo? Porque  não sou dono da verdade, pode haver gente  que goste de sistematizar , arquivar, ordenar.
Uma deficiente  relação com o controlo do ecossistema está geralmente na base da perturbação ansiosa. É como se houvesse uma NSA na nossa cabeça que tudo escuta, tudo prevê, tudo antecipa. A raiz dessa mania é que pode ser muita diversa, mas a cura passa sempre deixar o Snowden falar à vontade.

segunda-feira, 3 de fevereiro de 2014

A ilusão é uma realidade



Ling está em Paris e escreve a A.D. sobre as paixões. O diálogo imaginado, se bem que ingénuo e próprio da inexperiência do autor ( 21 anos na altura), tem a sua melhor parte na reflexão sobre a paixão ocidental ( um pecadilho essencialista, mas aceitável), ou seja, muito Bovary. Ling  acha que os ocidentais dão uma importância excessiva àquilo que um consenso quase  geral chama realidade. 
A normalização psiquiátrica pode beber nessa lagoa, mas a economia mental sobremoderna ( passámos o  fim das grandes narrativas e  já estamos a escrever novas) repele a diferença na percepção com um novo argumento: a ilusão é uma realidade.
A patologização do estado depressivo, a que já aludi aqui, é um sinal desse novo argumento. Poderíamos, numa  trivela à Quaresma, recordar o louco Bion e alvitrar que a desmaternalização está na origem do processo. A tolerância à frustração desenvolve  a percepção temporal, porque é  a repetição  cadenciada  e segura da mãe que faz o bebé  capaz de adiar a frustração. Maternalidades caóticas e pouco competentes, desfamiliarizadas,  podem ser o psico-útero de gerações de frustrados . É um very long shot, até porque falta o resto.
O resto é uma aprendizagem da ilusão como realidade, profetizada pela rapaziada da École Normale em 68. Algumas pessoas más ( incluindo alguns antigos) dizem que sociedades materialmente satisfeitas derivam para  necessidades cada vez mais sensitivas, terreno fértil para a frustração. 
Talvez sim, talvez não. Outros dizem que as novas drogas apenas deram resposta a um eterno estado depressivo e isso justifica o sucesso  dos americanos com os  antidepressivos. Seja como for, fiquemos com Ling: Mesmo para nos perdermos, há que crer em nós próprios




sábado, 1 de fevereiro de 2014

Sem culpa


Insisto na geração comprometida: os cinquentas, sem técnica, sem futuro, susbsídio a acabar. O que se diz a esta gente? Têm aqui um bom resumo do bico de obra.
É esmagador ter de excisar o sentimento de culpa de pesoas que não a têm.  Quem faz psicoterapia está habituado a lidar com a culpa e eu já dei para o peditório da judaico-cristã, porque os meus antigos ensinaram-me  que não foi preciso Cristo ( nem Sócrates) e ela não é um sentimento descartável em si. Acontece que, como nos filmes de terror, tem de existir um mínimo de verosimilidade.
Mal comparado, é como o luto grosso com  a diferença de que o morto pode, se os deuses estiverem para aí virados, ressuscitar. Às vezes um amigo arranja um biscate, às vezes há um pedaço de horta, às vezes há um trabalho sujo que precisa de mãos. A maior parte das vezes não há nada, excepto o café, a televisão e uma raiva imorredoira.  É o swap possível: a culpa pelo punhal.
Melhor que os psicólogos ou os jornalistas, Benjamin ( outro meu herói) descreve o cenário: O carácter destrutivo só conhece um lema: criar espaço; apenas uma actividade: esvaziar.