Uma discussão interessante é feita por Cícero no Tratado do Destino ( IX,17). Convida Diodoro, Epicuro e Crísipo: Tudo o que acontece teve de acontecer. As proposiçoes sobre o futuro são tão verdadeiras como as sobre o passado, ainda que nestas a impossibilidade de as modificar sejam aparentes. Já sobre o futuro essa aparência não é tão evidente.
Isto é um dos eixos do estoicismo. Tudo o que aconteceu teve de acontecer representa o aceitar da vida no que ela configura de pobre luto pela nossa omnipotência. A nota sobre a diferença entre o passado e o futuro é deliciosa. Aparentemente podemos modificar a representação do nosso passado ( a culpa foi de X, não mereci Y, Z afinal foi bom). Já quanto ao futuro essa nossa tendência para o falsificar é outro osso.
Muita da angústia que por aí grassa advém desta continuidade da falsificação. Como reorganizamos o passado de acordo com as conveniências do presente, imaginamos que o futuro pode ser igualmente arquitectado. Uma leve suspeita, porém, nos incomoda. Se renegamos o passado para melhor o poder suportar, tememos, claro, que as proposições que enunciamos sobre o futuro ( ambições, desejos, grandes sucessos) também não sejam uma maravilha de solidez.
Não é de admirar a angústia permanente, o reexaminar sucessivo e gaguejante do caminho que nos aguarda. E isto tudo enquanto desperdiçamos vida.
Excelente, muito elucidativo. Obrigado.
ResponderEliminarSó uma questão: faz então sentido planificar alguma coisa, mesmo sabendo que nenhum plano será a maravilha de solidez de que fala? Ou será que só faz sentido planificar desde que nunca adicionemos adjectivos, i.e. posso querer ser futebolista, mas nunca deverei desejar ser um grande futebolista, porque, caso não venha a sê-lo, terei desperdiçado a minha vida a tentar sê-lo e desperdiçá-la-ei ainda mais tentando perceber porque é que não o fui?
João
João, nos EUA, costuma ouvir-se "those who fail to plan, plan to fail"--quem falha o planeamento, planeia falhar. É lógico que os falhanços por negligência podem ser interpretados de forma a os tornar mais palatáveis, como disse o Filipe.
EliminarBem vinda, Rita, sou seu leitor regular.
EliminarObrigado, Rita. Percebo o conceito de falhar por negligência para tornar o falhanço menos insuportável, mas a questão é: se eu aceito as minhas limitações e a vida como ela é, e não tento nunca ser mais do que aquilo que posso ser, de modo a não desperdiçá-la ao perseguir determinado tipo de objectivos ilusórios, isso não é falhanço, negligente ou premeditado, mas aceitação. Isto assumindo, naturalmente, que não estou em conflito comigo próprio (a parte que me parece sempre mais difícil), o que poria a bola no campo da resignação e tornaria a existência um bocadinho menos estóica (se percebi bem a coisa). É esta distinção que me causa problemas. Podemos discutir os objectivos, mas é difícil acreditar que alguém não queira alguma coisa - das tais ilusórias - como se fosse possível querê-la muito. Acredito que a vida tratará de me ensinar que não é assim, mas é uma lição que tarda em chegar.
EliminarJoão