Participante de nome "anónimo", daqui do DC, no post anterior:
"Não sei se conhece a série "Breaking Bad". Síntese da cena em que estou a
pensar: ouvimos frases de um grupo de auto-ajuda, impera o discurso do
"é preciso aceitar". Depois de vários encontros em que se transmite a
filosofia da aceitação, uma pessoa grita, grita porque não aceita que se
possa aceitar, ou que da aceitação dependa qualquer coisa como uma
"cura". Será esta a questão? "
Aceitar, como eu o entendo, não tem nada a ver com "cura". Expus isso no Educação para a Morte e em muitas crónicas na Ler. Um exemplo tosco. Perdeste um braço num acidente. Revolta, raiva, tristeza etc. Finalmente aceitas. Nasceu-te um braço? Pois não. Vamos a exemplos menos toscos.
Uma sibila cara ao estóicos é o oráculo de Cumas ( leiam este exclente artigo de Maria Teresa Schiappa de Azevedo), tal como Virgílio nos apresenta na segunda écloga das Bucólicas - nasce de novo o grande ciclo dos séculos. A ideia é a da renovação, mas de uma renovação que caminha para a idade do ouro. Aonde quero chegar? Venham daí.
O leitor/participante mete, e bem, a cava - não aceito que se possa aceitar -, mas depois remata ao lado: ou que da aceitação dependa a cura. Aceitar a perda ( de um orgão, da alegria, de um amante, de um filho) significa sobretudo que te transformaste. Claro que podes não aceitar: uma 6,35mm e já está.
Agora, imagina que abres um ciclo novo, uma tautologia estóica porque todo o ciclo é novo. Bebes, comes, tens sexo, ris-te, trabalhas. Aceitar não é curar, é transformar. Fazes tudo isso, mas de uma forma diferente, a tua antiga pele ficou para trás. Tenho gente em terapia que me diz isto assim, tal e qual. E eu posso, coisas da vida, assinar por baixo.
(outro) post precioso. A maturidade é isto mesmo.
ResponderEliminarDei por mim a pensar no meu percurso de pai que perdeu uma filha - um luto individual muito bem feito, um luto conjugal (pode dizer-se assim?) altruísta e desajeitado (uma contradição angustiante). O que disse eu de mim próprio, nas vezes que falei nisto? Não sei, mas nunca terei falado em cura, não porque soubesse que não era, mas apenas porque a palavra não surgiu. Terei falado em transformação? Não sei. Aceitação sim, muitas vezes, talvez tenha sido a expressão mais usada. E paz. Sim, paz, também, o que quer que isso significasse. Obrigado.
ResponderEliminarobrigado eu ao dois.
EliminarO que o Filipe escreveu fez-me pensar na ficção (o que quis o J. dizer com o grito?), na vida. No remate que fiz, existe um conjunto de ideias. A mais simples: quem sofre quer sofrer menos. A mais complexa (e que demorei algum tempo a formular): sofrer é estar doente. Claro que, depois de ler o seu texto - a questão da tautologia estóica...-, preciso de dar outro sentido a isto.
ResponderEliminarHá espaço para todas as interpretações, vamos discutindo-as...
EliminarFazes tudo isso, mas de uma forma diferente, a tua antiga pele ficou para trás. Mas o que se faz depois da perda, faz-se perdendo uma parte da alegria, uma parte de inocencia, uma parte da fé em nós e na vida?
ResponderEliminarpois. isso.
Eliminarmetemos o couro a secar para depois servir de tapete da sala. ele vai lá estar sempre a relembrar-nos.
Tudo se perde, mesmo sem a perda - a inocência, a alegria ( se fores despedido) a virgindade eventualmente - tudo se transforma.
ResponderEliminarIntroduzo as palavras na máquina semântico-emocional, luto, transformação, aceitação, e não sai nada de diferente do puro e duro "arquivado".
ResponderEliminarNão há trajecto de ultrapassagem na morte de um filho/a, assim como não há caminho de regresso ou recomposição dos acontecimentos.
Podemos descrever(-nos) de forma diferente (do que) aquilo que vivemos?
Penso que não. Apenas está ao nosso alcance arquivar, sob várias nomenklaturas, mas ainda assim arquivar, guardar num lugar seguro e controlado.
Ou seja, não há um "outro discurso", mas apenas "não discurso". E quando se destapa o arquivo, é sempre aquela sensação de algo de inebriante e fantasmático, como na evocação de Proust.