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domingo, 30 de março de 2014

Agora sem pernas

Com duas patas da frente. É certo que os boxers têm uma patada terrível, mas, mesmo assim, o que pensas? Talvez que a medicina  tenha contrariado Darwin. Ou não. Talvez conheças muitos humanos sem pernas e que levam  uma vida excepcional.
Sim, mas o cão não sabe que podia ter quatro, portanto, para ele, isto é a felicidade: correr na relva com o dono. Já os  humanos sabem que a felicidade é coisa diferente: é o melhor  que temos, subtraído a tudo o que poderíamos  ter.

sexta-feira, 28 de março de 2014

Dar a cara


Não tenho facebook, é a primeira vez que publico uma fotografa minha. Esta tem seis anos. Os olhos azuis estão mais baços, a barba está entre o louro e o grisalho. Enfim, um cão velho. É por aqui que quero pegar.
A experiência inclui a linguagem não-verbal. Aprende-se  a usar o corpo como suporte da palavra. Ao fim de tantos anos  já sei que não devo abusar do  contacto visual, já sei usar um sorriso para dizer que acredito em vez de sugerir dúvida, já sei  fazer com que as mãos desenhem apoio.
O corpo também facilita uma regra que aprendi com Kraus ( não é  psi): um novo insight deve ser exprimido de forma a que pareça acidental que os pardais no beiral  tenham deixado de cantar.

terça-feira, 25 de março de 2014

domingo, 23 de março de 2014

Do perigo


A família está em perigo, o trabalho está em perigo, a educação está em perigo, a cultura está em perigo, a democracia está em perigo  etc. Interessa-me mais a percepção  individual do perigo, ou do risco. Por exemplo:


Com que então a forma intuitiva, automática, natural?  Digamos, portanto, que temos aqui uma versão do élan vital de Bergson: uma força interior que não pode ser entendida ou articulada racionalmente, que nos atira para o vazio e para o desconhecido.
Tenho duas mulheres  em terapia que estão  a viver situações de risco. É notável como ambas  criaram um código próprio para as profecias e relatórios  clínicos, interpretando  a informação  e os factos a partir de pequenas inferências,  deduções,  atribuições; a partir  de um mundo interior.

quinta-feira, 20 de março de 2014

Os passarinhos da primavera


"Con tales afectos dijo las razones pasadas Clemente, que estuvo en duda Andrés si las había dicho como enamorado o como comedido; que la infernal enfermedad celosa es tan delicada, y de tal manera, que en los átomos del sol se pega, y de los que tocan a la cosa amada se fatiga el amante y se desespera."
Este pedacinho de La gitannila, de Cervantes, é delicioso. O apaixonado é o louco, o ciumento é o possuído por uma doença infernal. Ando aqui a fazer uma pequena  série  de curtas metragens, mas desde o Amor  & Ódio assumo o interesse por taxonomias como a do grande Cervantes. 
Nesta primavera desejo às pessoas que acompanho em terapia que esperem do amor o mesmo que espero da minha açorda de poejos: que lhes  seja leve.

segunda-feira, 17 de março de 2014

Corridinho


Separarmo-nos de alguém não tem segredos. O outro passa  a suplente, depois  deixa de ser convocado e finalmente é posto na lista de transferências. Agora, separarmo-nos de nós é uma história de massacre. Este livrinho conta como é.
Sem memória esvai-se o presente que  simultâneamente já é  passado morto. Quer o Cardoso Pires dizer que é a memória que faz com que o tempo não seja apenas medido mas também sentido. Um demenciado diz que vai ali falar com a mulher que já morreu há uma dezena de anos. Isto todos entendem, mas o Cardoso Pires colhe mais uns abrunhos.
A memória é uma advogada  de barra. Quando  julgamos ter provado os factos, ela puxa de um articulado e obriga-nos a recordar outros. As memórias dos meus filhos quando eram pequenos são ensombradas pela impossibilidade de recuperar esses instantes. Por vezes chego ao ponto de invejar os doentes demenciados que todas as semanas vejo. Uma estupidez que o Cardoso Pires cura.

quinta-feira, 13 de março de 2014

Das mortes


No outro dia diziam-me que agora quando a gente morre as redes sociais prolongam  as despedidas e a memorabilia. Bem, suponho que era inevitável. Se no amor as redes sociais fazem o papel de casamenteiras, na morte desempenham o de carpideiras.
Há uns anos segui o blogue de um  homem com cancro. As sessões de quimio,  notas de humor, pensamentos mais submarinos, enfim, de tudo um pouco. Registei o aplomb, mas não mais do que isso. Faltava raiva, faltava gasolina.
Desde que  a tive em casa e  comecei a escrever  sobre Ela, e a trabalhar sobretudo com perdas, tenho a impressão de que lhe perdi um bocado o respeito. Erro fatal, claro, que pagarei com língua de palmo. Às vezes estou  no gabinete com um homem, o P.,  ainda jovem, que já só anda de canadianas e está incontinente. Morre por dentro com esclerose lateral amiotrófica. Leva-me dezenas de páginas escritas à mão. Sobre a morte, poesia etc? Não. Sobre política. Política internacional, geopolítica, política doméstica.
O P. não liga muito ao que lhe digo, mas aprecia falar  comigo. Um arranjo que me convém porque acredito pouco, ou nada, no que lhe digo. Excepto quando o  Álvaro de Campos fala pela minha boca: estamos todos na véspera de não partir nunca.

terça-feira, 11 de março de 2014

Arquivos


Não podemos viajar em terras que não tenham arquivos, dizia Gasset ( em La Teologia de Renán), o filósofo vive entre as coisas que se diz terem morrido. Com o tempo, fui-me especializando nos arquivos das vidas das pessoas. E que coisas lá há...
Não me interessa a pantomina psicanalítica, cheia de jargão  vazio e que faz dos arquivos um funeral da autonomia do sujeito à mercê das explicações do lançador de búzios atrás do divã. Interessa-me o que lá está enquanto parte viva e plenamente consciente do sujeito. Ou seja, interessa-me como é usado o arquivo.
No outro dia, uma mulher acabou por  me dizer: Não gosto do meu pai. Deve  haver poucas coisas mais difíceis de dizer  sobre  os vivos, precisou de grande coragem.  Ela não  usa o arquivo como depósito de material acusatório, antes como  elemento estruturador da sua identidade. É a filha que não gosta do pai, a filha que guarda uma  coisa que se diz ter morrido.

sexta-feira, 7 de março de 2014

Virtudes

A crise não paga vícios? Paga, sim.
O vício não é uma adição. O vício é uma formulação  moral, a adição é um conceito clínico. Encontram-se por vezes à esquina a tocar  a concertina, mas jogam em divisões diferentes. A heroína, o jogo ou o álcool sobrevivem à crise. Adaptam-se, mas sobrevivem. O vício é outra conversa. Tomemos, por exemplo, o da  caça, do cabrito vermelho alentejano ou da Amazon. Quem, no seu perfeito  tino, vai gastar menos electricidade para poder desperdiçar mais cartuchos, lamber as costelinhas  cor -de- Céret ou folhear um Burckhardt não editado em Portugal?
O vício é ( roubando Gramsci) um banqueiro do gosto em regime de monopólio, portanto,  um sindicalista da felicidade.


terça-feira, 4 de março de 2014

Quer deus queira quer deus não queira

Participante de nome  "anónimo",  daqui do DC, no post anterior:
 "Não sei se conhece a série "Breaking Bad". Síntese da cena em que estou a pensar: ouvimos frases de um grupo de auto-ajuda, impera o discurso do "é preciso aceitar". Depois de vários encontros em que se transmite a filosofia da aceitação, uma pessoa grita, grita porque não aceita que se possa aceitar, ou que da aceitação dependa qualquer coisa como uma "cura". Será esta a questão? "

Aceitar, como eu o entendo, não tem nada a ver com "cura". Expus isso  no Educação para  a Morte e em muitas crónicas na Ler. Um exemplo tosco. Perdeste um braço num acidente. Revolta, raiva, tristeza etc. Finalmente aceitas. Nasceu-te um braço? Pois não. Vamos  a exemplos menos toscos.
Uma sibila cara ao  estóicos é o oráculo de Cumas ( leiam este exclente artigo de Maria Teresa Schiappa de Azevedo), tal como Virgílio nos apresenta na segunda écloga das Bucólicas - nasce de novo o grande  ciclo dos séculos. A ideia é a da renovação, mas de uma renovação que caminha para a idade do ouro. Aonde quero chegar? Venham daí.
O leitor/participante mete, e bem,  a cava -  não aceito que se possa aceitar -, mas depois remata ao lado: ou que  da aceitação  dependa  a cura. Aceitar a perda ( de um orgão, da alegria, de um amante, de um filho) significa sobretudo que te transformaste. Claro que podes não aceitar: uma 6,35mm e já está.
Agora, imagina que abres um ciclo novo, uma tautologia estóica porque todo o ciclo é novo.  Bebes, comes, tens sexo, ris-te, trabalhas.  Aceitar não é curar,  é transformar.  Fazes tudo isso, mas de uma forma diferente, a tua antiga pele ficou  para trás. Tenho gente  em terapia que me diz isto assim, tal e qual. E eu posso, coisas da vida,  assinar por baixo.

segunda-feira, 3 de março de 2014

Aceitar


Tenho uma dificuldade. É uma mulher nova, com uma criança pequena, o marido morreu  há uns meses. Ela recusa o estatuto, enraivece-se contra o destino, tem experimentado auto-mutilações. Não é tanto o caso dela, mas o tom destes. Podia ser a mãe do estudante que morreu no outro dia ao volante ao pé de Coimbra, pode ser qualquer um que entenda que já nada vale  a pena.
Estes cenários são pedagógicos. A lalangue psi  pouco tem a dizer, a psiquiatria arruma-os com doses cavalares ( e  às vezes necessárias) de antidepressivos e hipnóticos.
Aceitar é uma tarefa diabólica. Julgavámos  estar destinados a um futuro de bonomia, sentimos os golpes como estrangeiros.