email para contactos:
depressaocolectiva@gmail.com

sexta-feira, 31 de outubro de 2014

E o qual é o teu?


A forma greco-latina  oasis vem do hamítico ou do copta ouhae/ouhi, lugar onde há um poço ( o árabe usa wahah).  Na zorra que  nos conduz, um oásis é como a beleza para a Cristina: fundamental.
No outro dia, dizia a alguém que me relatava as discussões intermináveis que tinha com marido: não estava casado consigo quinze dias.   Ela já é seguida por mim há muito tempo ( de forma intermitente)  e por isso não levou a mal. Eu levei.
Seja um lugar ou  um ritual, precisamos de um ouhi. Pode ser o bar da esquina, o nosso sofá, o terraço, o que for. Pode conter uma pessoa ou não. O que tem é de haver um poço. Ou seja, algo que rompa o trajecto e que nos convide  a demorar.
A felicidade é difícil, como a beleza, dizia Borges ( por que julgam que trouxe  a Cristina?), o oasis é belo e feliz.



quinta-feira, 30 de outubro de 2014

Corpo a corpo

"Sou gorda e pesada - respondeu - mas também sou amorosa". 
Bordenave é o personagem da novela de  Bioy Casares, Dormir al sol ( 1973). É um desgraçado que quer recuperar a mulher internada num hospício. Voltarei ao título porque  tem muito sumo, mas fiquemos hoje com esta tirada maravilhosa.
O corpo está  hoje sob fogo amigo. Recusamos a sua decadência e fazemos  a alegria do IRS de cirurgiões plásticos, esteticistas e ginásios. Ao contrário do que dizem os preguiçosos, a tensão entre o ideal apolíneo e o dionisíaco é velha e clássica.  O corpo belo e perfeito também é velho. O que há de novo é a angústia apolínea. A cinquentona julga que a vida melhora  se eliminar as rugas, a lolita  cuida que tal passa por implantes de silicone nas mamas.
A verdade é que o corpo tem um sujeito que é o seu senhor, não o seu escravo.

terça-feira, 28 de outubro de 2014

Chorar alivia?


"Tens um novo advogado, o dr Bucefálo. Nada na sua aparência  te  faz recordar que ele foi em tempos um general de Alexandre da Macedónia". Adoro o Kafka humorista-depressivo das pequenas histórias  ( algumas nem meia página têm)  e esta é a abertura  de "O novo advogado". Trago-a porque nos pode ajudar a responder à pergunta que titula este texto.
Nem sei quantas pessoas choram à minha frente todas as semanas. O enorme carregador de lenços de papel é mudado de quinze em quinze dias. Este choro é diferente, claro. A pessoa está num contexto terapêutico, costuma aliviar-se ( o que faz muitas  vezes com que eu me veja como um autoclismo). O outro choro interessa-me mais: o solitário. Deixo de fora o choro de alegria, não me interessa nada.
Aprendi que se choramos de angústia antecipada o choro não alivia, mas se choramos por causa do que já se passou melhoramos  um  cadinho. O amargo das lágrimas  depende se somos o dr. Bucéfalo ou um general de Alexandre.

sexta-feira, 24 de outubro de 2014

Do controlo

É uma subforma da obsessão, mas tem fronteiras , exército e governo  próprios. O rei é o medo.
O'Neill ensina melhor do que os psicólogos ( Poemas com endereço,  1962):

Perfilados de medo , agradecemos
o medo que nos salva da loucura.
Decisão  e coragem valem menos
e a vida  sem viver é mais segura.

É isto mesmo que o controlo  nos oferece: uma vida  sem viver. O sujeito vai tecendo, como o pequeno roedor na Toca, do Kafka, mil saídas , mil alternativas, mil estratagemas. Por vezes parece que as coisas lhe correm de feição, o que não admira tal é a energia posta ao serviço.
No final, até a  segurança é apenas um verniz fino.


terça-feira, 21 de outubro de 2014

Essência


Depois de muitos tempo a aprender  em pequenos fogareiros,  há quatro anos que  só grelho em brasas de lenha ( salvo imprevisto)  e numa boa instalação. Oliveira,  pinho, azinheira, galhada avulsas, pinhas, rama de pinheiro, carqueja. A diferença para o carvão  é abissal. É mais difícil porque as brasa de lenha duram menos ( numa instalação urbana), mas o sabor e textura são excepcionais.
Agora  tenho feito com o peixe uma travessura. Em vez de o grelhar, reduzo a combustão ( molho  a lenha) e fumo-o na hora. O peixe acaba no forno  em azeite, alho, limão ( alcaparras no caso do espada, por ex) e com as ervas que cada espécie solicita ( tomilho, alecrim, louro, oregãos, coentros, salva, poejo etc). Persigo, portanto, a essência do fumo de lenha.
Ora bem, para vos dizer que podem fazer o mesmo com as vossas vidas.

segunda-feira, 20 de outubro de 2014

Ansiedade e linguagem

Controlar a ansiedade ( com ou sem a ajuda de ansiolíticos) é quase sempre uma batalha extenuante. Isto acontece porque as pessoas tentam combater  contra um inimigo entrincheirado num terreno mais alto e fortificado. Asneira.  Este estudo carrega nas estratégias cognitivas , mas toca ao de leve num ponto que costumo ensinar : o da linguagem.
A pessoa sente  a angústia, a inquietação, a desconcentração e a tristeza ( deixemos de lado a fala de ar, os suores e quejandos pois são sinais de outra ordem, da crise de pânico) e acompanha com uma liguagem a condizer. "Não me apetece fazer nada, não sei o que fazer, sinto-me ansiosa, quero enfiar-me a dormir 24h etc".
A linguagem que  usamos  para definir os nosso estados emocionais não é inocente. Se estamos na cama com alguém não dissertamos sobre  performances ou tamanhos. Ou seja, a linguagem emocional ajuda a definir o comportamento.  O controlo de que fala o artigo  citado deve começar no  poder de nomear : é a primeira linha de combate à perturbação física da ansiedade.

sexta-feira, 17 de outubro de 2014

Tempo e distância

Cerca de 25% da  relação com as pessoas que tenho em psicoterapia já é online. Elas escrevem e eu respondo, eu pergunto e elas respondem, elas desabafam e eu leio. Este suporte é isso  mesmo, um suporte ao trabalho terapêutico. Não é consulta, não é terapia, não é pago.
Serve de muito. Para já, a escrita  oferece um resguardo do gabinete. A pessoa está no seu smartphone, ou em casa ao computador, não sente  a pressão do terapeuta. Depois, a escrita. Escrever e pensar é muito bom. É certo que a emoção transparece menos ( embora  mais do que se pensa), mas ganha-se em síntese.
Por fim, o principal. Dendy foi quem usou pela primeira vez o termo psicoterapia. Era um místico interessante, mas acertou no alvo: não podemos definir a alma humana, mas temos de garantir as suas necessidades.

terça-feira, 14 de outubro de 2014

Psicoterapia: sucesso e fracasso

A dúvida é um dos nomes da inteligência, arrumou Matamoro na edição que fez do Diccionario Privado de Borges ( 1979). Blas Matamoro  também fez muita coisa finada: um dia hei-de cá  trazer  Cuerpo y Poder- variaciones sobre las imposturas reales. A dúvida então: o que é um sucesso ou um fracasso psicoterapêutico?  Recuso a terminologia. Na dúvida,  opto por vitórias e derrotas.
Ao contrário dos grandes  sistemas  totalitários (psicanálise, DSM, cogntivo-comportamentalistas), gosto de trabalhar  entre Epicteto e Petrarca, reunindo-me  amiúde com S. Agostinho, João do Santos e  Séneca. O velho Freud, o tardio, aparece de vez em quando para o café.
Viver bem é  o alvo. Respeitar a vida, a flecha. Uma vitória  é quando o sujeito consegue viver bem sem esperança. Uma derrota é quando só espera por ela.

domingo, 12 de outubro de 2014

Ruptura



A série, entre  outras vitualhas, serve-nos um curso inteiro sobre a ruptura amorosa. Não sei se a minha guru das  ( boas) séries já  viu a coisa sob esta prisma, como dizem os autarcas, mas arrisco  a repetição.
Quando a série começa, o  par Walter/Skyle  tem cerca de 16 anos de vida em comum, um filho com deficiência física e uma vida pacata. Depois o homem ganha um cancro mortal e a mulher engravida. O casamento sobrevive e melhora. É então que Walter se torna  um druglord das anfetaminas e  a ruptura , ou melhor, as rupturas, se instalam. Em pizzicato.
Skyler, um papel fabuloso, do melhor que  já vi,  representa a mulher inteira e quase-honesta, mas,  sobretudo, a mulher de fibra, a anti-donzela: não se queixa e ninguém  a pisa. É uma combinação encantadora. A sua principal nemesis é a segurança dos filhos.  Quando compreende o verdadeiro alcance das  actividades do marido, agita-se.  A traição de Walter, a sua vida dupla,  não é com uma mulher, é com  a segurança. Os milhões e as mentiras  são o bilhete para Walter  ver Skyler enrolar-se  com o antigo patrão.
Mais tarde,  a ruptura entra numa nova fase. Walter  promete emendar-se e Skyler aceita. O cliché da reconciliação é subvertido: fica-se com o dinheiro e com a segurança.  Skyler ajuda na lavagem do dinheiro. O problema é que as coisas são o que são e Walter retoma  a actividade, ou melhor, as consequências da actividade. Não foi infectado pelo HIV nem engravidou a amante, apenas teve de desatar a matar ex-cúmplices,  é perseguido pelo cunhado, da  DEA, etc.  Skyler,  agora  anti-Medeia,  prefere os filhos e a ruptura não tem retorno. O confronto físico final entre os dois não conta muito, mas  a despedida, sim: Walter assume que tudo que fez não foi, afinal, pela família, mas por ele e para ele.
Este curso geral da ruptura amorosa mostra que, num casamento -  tradicional e com filhos - as prioridades  políticas são negociáveis apenas até um certo ponto. Walter e Skyle têm uma base irredutível, nacionalista, que os afastará sem remédio. O truque, se é que existe, é  nunca ter de  chegar  a negociar a base.


sexta-feira, 10 de outubro de 2014

Zona de conforto


Encontrava este termo em jornais e artigos americanos. Nunca imaginei que  viesse a ser  usado num país com tantos mexilhões e da  nêspera do Mário-Henrique  Leiria.
Tecnicamente, podemos  ver a coisa como um artefacto contrafóbico. Do grego zone, cinto, faixa cintura, para o zona latino, aplicado à geografia. Teríamos assim um espaço delimitado que agora parece significar uma espécie de reserva onde os leões  bocejam para os turistas que vêm ver a África.
Duvido que o mexilhão se sinta muito confortável no mar de Moledo e ainda mais que a nêspera do Mário tenha apreciado o que a velha lhe fez. De certa forma, a zona de conforto é o anti-destino.


terça-feira, 7 de outubro de 2014

Lugares comuns

Benjamin ( Infância Berlinense, 1900) e o telefone:  poucos conhecem a devastação que o seu aparecimento causou no seio das famílias. Conta  como se o pai entregava à manivela até se esquecer de si, dominado pelo transe. Benjamin era mais prático: rendia-me  à primeira proposta que me chegava através do telefone.
No outro dia, uma rapariga estava a contar-me  como tinha acabado a relaçao amorosa. Era uma primeira entrevista apenas destinada  a fazer  a história clínica. Loura plastificada, lânguida, deprimida, responsabilizando todos por tudo, a caneta já escrevia sozinha, coitada. Até que  ela me conta as palavras  finais da ruptura de uma  forma que me acordou: ela estava numa cidade, ele noutra. Por telefone? Acabaram por telefone? Diz ela: sim, por sms.
É fantástico como a  tecnologia facilita  a vida, até  a dos  que não a vivem.

sábado, 4 de outubro de 2014

Inércia & obsessão


No tratamento das depressões, a inércia é um adversário de calibre, sobretudo no quadro da depressão ansiosa ( que este pequeno resumo generalista sintetiza). Os antidepressivos, mesmo os da nova geração, não eliminam o problema. A moleza e a desmotivação, para usar termos simples, variam , claro, consoante as condições do doente. O desemprego, o divórcio e a perda são os principais contribuintes.
As ideias: "não se é capaz de fazer nada", "está-se muito cansado", "nada vale a pena". Dito assim, parece  um estribilho depressivo simples, mas o problema é que  muitas vezes estas ideias são construções obsessivas. Este artigo, como muitos, inverte o jogo: analisa a depressão como efeito da desordem obsessiva. O meu tabuleiro aqui é ao contrário: a ideia obsessiva como subproduto do estado depressivo.
O doente convence-se de que nada pode fazer, ou porque não sabe ou porque não adianta. Esta construção irracional é desmentida muitas vezes pela realidade. Até trabalha, até é bom no que faz, até cuida dos filhos, até tem  bom  sexo. Tudo em menor quantidade, claro, mas tudo está presente. A ideia obsessiva resulta do estado depressivo nestes sujeitos particulares, porque são sujeitos que reagem  de uma  forma muito particular  à depressão. São sujeitos que, por variadíssimas razões, não se sentem à altura  da depressão.
O essencial nestes casos  é  dar vantagem ao estado depressivo. Parece bizarro, eu sei, mas a tristeza é racional, a obsessão não. Uma técnica que costumo utilizar é a de ajustar a baixa expectativa: quanto menos  a pessoa se exigir ( não faltar ao trabalho,  agradar-se quando em vez etc), menos combustível tem o motor obsessivo.

quinta-feira, 2 de outubro de 2014

O affair


Relação extra-conjugal não gosto, sabe-me a pizza com extra  azeitonas. Caso também não: não se trata de um crime ou de um mistério. Affair, ou affaire, fica muito melhor: negócio amoroso.
E é de um negócio que trata. Tive duas mulheres jovens,  que, entre lágrimas, me disseram no silêncio do gabinete que casaram com um  estando já  envolvidas com outro. Quer dizer, combinaram um negócio mas a meio arranjaram novo parceiro. Casaram  à mesma porque o amante já era casado. Sim a pressão social, o restaurante já marcado, pois, mas mais vale um pássaro na mão...
No Amor & Ódio conto outro   caso assaz divertido. Uma mulher enredava a terapia com a indecisão e o sacrifício moral  do affair.  Num belo dia entra-me no gabinete e diz-se  toda contente porque finalmente vai ter a casa com  que sempre sonhou. Moradia, leões de pedra no jardim, piscina. Eu, estúpido, pergunto-lhe se finalmente se divorciou. Ela olha-me como olhamos os insectos ( eu era ainda um nadita inexperiente): Claro que não. É para ir viver com o meu marido e os miúdos".  À minha pergunta de como isso combina com o affair e a situação em geral, despacha-me: Não tem nada  que ver.
No mesmo lugar do cérebro em que nós , homens, temos o comando da genitalia e um pequeno arquivo de mentiras infantis, elas desenvolveram uma sociedade inteira.