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sábado, 27 de dezembro de 2014

Não me dês a pata


Adoptou-me ao ponto de protestar sempre que os da casa me abraçavam, permanecendo indiferente aos abraços entre eles. Até ficar doente, não houve uma única vez em que, sentindo  a chave na porta, não me tenha vindo saudar como se possuída. Mesmo quando eu  demorava apenas cinco minutos para ir à garagem. Era, claro, um ser irracional, tal como o bebé de ano  e meio que vem a correr para os braços do pai, acabado de entrar em casa,   que retribui  imitando  o Alien dos filmes da Sigourney Weaver. As grandes  perdas incluem elementos cénicos  fossilizados.
Como nas cidades já não temos rebanhos e não caçamos nas ruas e  esplanadas, sobra  a protecção pessoal como última razão para ter um cão. Sendo os labradores, os King Charles Spaniels ( um must  da  moda estes) e outros mini-cães os mais comuns nos prédios, também esta última razão desapareceu. O real motivo, hoje, é querermos  ser amados de   foma incondicional por um ser irracional. Rima e faz  sentido.
Ainda bem que o laço humano não é incondicional. Ainda bem que os outros não estão lá sempre prontos para nós, a  dar à cauda e  indiferentes ao nosso humor. O anqueo humano é sujeito à manipulação, ao equilíbrio, à culpa e à rejeição. Para além disso, não lambemos os nossos próprios  genitais.










sexta-feira, 19 de dezembro de 2014

Largos rios têm cem obsessões


Nem sempre é fácil distinguir o amor da obsessão. Excluo aqui as formas doentias  de posse disfarçadas de amor. O leitor perguntará: Mas... então não é dessas que quer falar? Não.  Os e as narcisistas e/ou neuróticos que usam a relação para sobreviver, não me interessam nesta discussão porque a fadiga obsessiva, a existir, não é com o outro, é com os ganhos da relação. 
O mato fechado  é o de adultos bem consigo e com a sua história, mas que só a querem escrever com uma determinada pessoa. Chegam  a partilhá-la, se necessário, suportam hesitações, desvios, ausências. Querem é ficar com ela como um prolongamento natural da sua existência. Não é preciso psis para descrever, René Char fá-lo muito melhor:

Au bout du bras du fleuve, il y a la main de sable qui  écrit tout ce qui passe par  le fleuve.

terça-feira, 16 de dezembro de 2014

Dentro da insegurança


Kipling, "If":

If you can dream - and not make dreams your master,
If you can think - and not make thoughts your aim;
If you can meet with Triumph and Disaster
And treat those two impostors just the same;

Não consigo convencer toda  a gente da conveniência da linha estóica, eu sei.  
A ideia de nos projectarmos no futuro é venenosa,  leva-nos a desperdiçar quase tudo, mas é um veneno  poderoso. A ideia de controlarmos as nossas vidas, e a dos outros, e a crença de que podemos reparar as injustiças do passado são sherazades  igualmente letais e maviosas.
A religião e o realismo depressivo fornecem defesas robustas, mas nem todos as conseguem aplicar. Envolvem  uma diminuição da nossa importância relativa, ou, se quiserem, do nosso narcisismo infantil.
Sobra a inteligência: recomeça sempre, aproveita tudo, o fim é igual para todos.


sexta-feira, 12 de dezembro de 2014

Quem tem medo do lobo mau?

Já tinha saudades. Ontem, uma rapariga que tenho em psicoterapia, instada sobre se o Natal lhe provoca neura, respondeu-me: Não! Adoro o Natal.
Talvez seja uma coincidência a rapariga ( 22 anos) viver numa família daquelas que os teóricos marxistas-feministas-deleuzianos chamam de prisão neurasténica:

The entire industry of psychotherapy is based around trying to straighten out what was done to people by their family and trying to get them to get them to stop doing equally horrible things to the people within their family structure

segunda-feira, 8 de dezembro de 2014

Os sacríficios pelos filhos: mitos



"Fui uma sacrificada" e "sacrifiquei-me toda  a vida pelos filhos" são linhas emocionais que emparelham bem com "não estou para abdicar da minha liberdade por filhos" e "não preciso de ter filhos para ser feliz". Todas estão certas. As duas primeiras porque é assim que a mulher se quer definir, as duas segundas porque filhos são opções  e não são essenciais para a felicidade. 

Todas estão erradas:

1) Mesmo nas condições mais terríveis ( por ex, campos de refugiados e/ou pobreza extrema), uma mãe  emocionalmente saudável não sente como sacrifício abdicar de um pedaço de pão velho para  o filho. Já numa cidade europeia, uma rica mãe talvez julgue ser um sacrifício continuar casada ou perder uma hora  de sono por causa da criança, mas é uma ilusão: a manutenção do  casamento  dependerá mais da manutenção do nível de vida e  uma hora de sono recupera-se não trabalhando tanto para pagar o silicone. 

2) A nossa liberdade depende de muita coisa: do regime político  em que vivemos, do nosso amor-próprio, de termos sido amados ( ou de superar o inverso), de sobrevivemos à inveja doentia. De filhos não depende de certeza. A nossa suposta  felicidade são bocados soltos de tudo o que  a vida tem e filhos são vida. A menos, claro, que a mulher imagine que não ir passar o fim de semana fora sempre que lhe apetece é uma limitação à sua liberdade ou que a felicidade é fazermos o que quisermos; como os velhos comedores de ópio.


Lembro-me de uma senhora do povo, duriense, que contra a vontade do marido escolarizou as cinco filhas. Passou trabalhos piores do que os do Benito Prada.  Disse para a televisão: Sacrifício? Que disparate. Fiz com todo o gosto e voltaria a fazer. Quanto à liberdade e à felicidade, entendidas como no ponto 2, cruzo-me amiúde  com  uma mulher  que passeia todos os dias dois cãezinhos impecavelmente vestidos: Dão imenso trabalho, nem queira saber, mas são tão queridos..



sexta-feira, 5 de dezembro de 2014

Intimate partner violence


Pois aqui é que a porca torce o rabo. Quando trabalhava na área das drogas, e estava actualizadíssimo nesta matéria, os estudos de que dispunhamos eram claramente favoráveis ao haxixe no que se referia a violência doméstica, absentismo laboral  e acidentes no trabalho. Houve até um pequeno escândalo, nos anos 90, porque os EUA censuraram estas conclusões.
O osso , no entanto, é outro: até que ponto o intimate conflit deve depender de drogas? Bem, é mais frequente  do que se pensa, se em vez de drogas ilegais pensarmos em drogas legais - ansiolíticos, antidepressivos e neurolépticos.

terça-feira, 2 de dezembro de 2014

Estado da arte: culpa e redenção


É um objecto quase perfeito,  não fora o final  pitoresco  sobre o   Port Vale XArsenal na War Cup
É um episódio  quase todo sobre  a culpa. O psiquiatra polaco, cuja família morre em Majdanek e que  sente a culpa dos sobreviventes, e   o aviador britânico,  bombardeiro de  civis em Hamburgo, cuja mulher se envolve com o médico dele.
Depois, o triângulo principal. Ela recebe de volta o marido, soldado libertado de um campo de prisoneiros alemão, que não acha graça a amizade entre  a bela  o monstro (  um prisioneiro de guerra alemão que a ajuda na quinta). Ainda há um rapaz que foge para Hastings ( onde se passa a série), porque estava farto de levar com a raiva das mulheres  a quem entregava os telegramas a anunciar a morte dos maridos ou dos filhos na frente  de guerra. Nicholas Ray  também filmou a culpa, o amor e a guerra  nesta outra delícia, mas num quadro  mais restrito. Broken Souls é  avassalador.
É quase todo sobre a culpa, porque reserva  um pedaço para redenção. O psiquiatra, enlouquecido pelas notícias sobre Madjanek,  acaba por matar o prisoneiro alemão porque este o empurra ( cai  na valeta, como todo o judeu) e o manda afastar-se, em alemão brusco. Quando Foyle lhe diz que haverá atenuantes, o psiquiatra responde que não:" todos tínhamos vidas normais até 1939". A bela resistiu à tentação de se deitar no feno com o vigoroso ajudante alemão durante  quatro anos e parece a única  não-culpada, mas é engano: sabia que o alemão estava doido por ela e alimentou  o sentimento como uma muleta para a solidão. Quando ele morre, julga ser o marido o assassino e deprime.
A origem da palavra redenção remonta ao latim: voltar a comprar, do verbo red-emere, o "d" em "re" usado, no latim antigo, antes das vogais. Ou seja, comprar de novo a inocência. Fica para depois...


domingo, 30 de novembro de 2014

Quando somos nós o assunto


Perguntam-me muitas vezes: Como lida o psicoterapeuta com problemas iguais aos das pessoas que nele confiam? Casa de ferreiro, espeto de pau? É óbvio que cada profissional fala por si, por isso a resposta é individual.
A minha linha de trabalho é sempre a autonomia do sujeito. Seja num luto, numa separação, numa questão laboral, no amor etc. A saúde mental, do meu ponto de vista, exige  capacidade de nos aturarmos. A partir daí muita coisa se pode construir.
Somos animais contraditórios. O leão não hesita sobre  a zebra nem o atum sobre o cardume de sardinhas. A ambivalência - onde cabe o remorso, a culpa e o sentido de justiça - é a base da autonomia: é o tiro de partida para a compreensão  de que, em última análise, temos sempre uma  opção. Os outros, a infância e os males do mundo são inocentes na nossa solidão.
Na minha vida, repleta de asneiras, o que a maturidade me trouxe foi a autonomia. Escolho, decido e sinto em função da liberdade  de poder optar por outras escolhas. Assim, só os  deuses e o destino são meus senhores.

quarta-feira, 26 de novembro de 2014

No fim do amor


É incrível, com o passar dos anos, a diversidade de modelos amorosos que um psicólogo observa. Paixões prometedoras que terminam  enquanto um  pardal vira a cabeça, amores longos interrompidos pela chegada de um par de pernas sem cruise control, enfim, uma catrefa de combinações. A pergunta, sobretudo delas, que as ouço muito mais, é sempre a mesma: Como pôde acabar ? Gosto de  fazer outra: como pôde começar?
Não é assim tão disparatada. Se um amor pode  acabar estupidamente, sem razão nenhuma etc, por que carga de água não pode também ter começado  estupidamente e sem razão  nenhuma?
Existem várias explicações. Ela julga poder modificá-lo, ela fecha os olhos a coisas evidentes desde o início, ela julga-o garantido ( isto é mais eles, mas enfim...), ele é casado e com filhos, ela está sozinha há demasiado tempo, ela é insegura  e o indivíduo enche-lhe os ouvidos ( os verdadeiros orgãos sexuais das mulheres) etc.


sábado, 22 de novembro de 2014

Ansiedade, de novo

Tanta gente, tantas conversas, tantos ansiolíticos. Os anos  passam e sei sempre mais do que sabia no ano anterior. Mal fora.
Tendemos sempre a enfrentá-la no seu terreno, o que é um erro. E o terreno é o da crise  de ansiedade com a sua  parafernália de sintomas, nem sempre com o aparato da crise de  pânico. A mellhor estratégia é procurar um terreno mais favorável.
É a própria estrutura social da pessoa que deve ser batida. O que fazes, como vives, quem amas, quem evitas, o que bebes, onde dormes, quanto ganhas. Faz-se uma machan ( ou mutala) em cima de acácia ou figueira -da -Índia e observa-se tudo. A ansiedade caça lá em baixo, é preciso saber do que vive.
Podem dizer-me: é muito difícil mudar a estrutura social da pessoa. É sim senhor, é  quase impossível, mas não precisamos de tanto. Por vezes um grande ajuste é suficiente. Uma relação amorosa que já morreu sem  minguém a avisar, uma  sogra com a qual já não há bandeira branca que  valha, uma  mania ( de controlar  o filho, de fumar demasiado  haxixe etc ) que tem de ser jugulada. E por aí em diante.
Nesta altura estão prontos a gozar comigo: se é assim tão simples por que existem tantos ansiosos? Porque é mais fácil deixar de fumar depois de um susto ou emigrar quando perdemos o emprego do que aceitarmos  que a nossa vida está errada, que a culpa não é dos outros, que mudar não é apenas um slogan político.

quinta-feira, 20 de novembro de 2014

O caminho de cada um


Esquece o gato que fugiu, a infância neurótica, os complexos das mamas caídas. Queres uma depressão D.O.P.?  Então :
a) Tens uma doença incurável e perigosa (já fizeste  o primeiro trasplante hepático), mas que te permite trabalhar,  ser mãe, ir ao cinema. O teu marido dorme no sofá mental, estás, digamos, um nadinha diferente.
b) O teu companheiro ( namorado com quem vivias, enfim....) morreu num acidente de automóvel, os pais dele  lixam-te  a cabeça porque são herdeiros de metade da casa que compraram, o teu trabalho é uma porcaria mas não há alternativas, a crise dispensa as tuas  ( boas) habilitações.

Uma espada de Dâmocles sobre  a cabeça da primeira, uma estrada esburacada para lado nenhum sob  as botas da  segunda.
Da próxima vez que te sentires deprimido porque fizeste quarenta anos ou porque o teu filho teve má nota  a matemática, passa por aqui.

terça-feira, 18 de novembro de 2014

Desaprender

O  terrível O'Neill ( Uma coisa em forma de assim, 1985) explica:

"Há uma altura em que, depois de se saber tudo, tem de se desaprender. Sucede assim com o escrever. Com o escrever do escritor, entenda-se. Eu, provavelmente poeta, estou a aprender a... desaprender. E para quê e como se desaprende? Para deixar de ronronar, para que o leitor, quando o nosso produto lhe chega às mãos, não exclame, satisfeito ou enfastiado: «- Cá está ele!». 

Isto aplica-se a outros matos. Tratarmo-nos é, muitas vezes, desaprender.  Desaprender de viver com a mulher/marido e os filhos, desaprender de ter o pai vivo, desaprender de conseguir correr, desaprender de abraçar um filho.  Etc.
Reconstruir a cidade bombardeada é outra forma de desaprender: de viver.




domingo, 16 de novembro de 2014

A violência da interpretação


O título é retirado de um pequeno livro, "La violence de la interpretation", de Piera Aulagnier ( uma fraude ambulante), que dorme há 25 anos  na  minha pequena biblioteca. A tira é daqui: https://www.facebook.com/porliniers?fref=ts. Aproveito o pictograma de Aulagnier, expurgado do mambo-jambo psicanalítico, para sublinhar  a natureza da interpretação em psicoterapia.
O terapeuta pode funcionar como o porte-parole ( porta-voz), aquele que liga o nome à coisa. Por exemplo, no outro dia acabei por dizer a uma mulher que  tinha de sair do estado de auto-comiseração em que se enredara.  Zangou-se um bocadito , mas depois  assimilou. Ou seja, muitas vezes a nossa função é a de representar as partes doentes, dar-lhes voz.
 

sexta-feira, 14 de novembro de 2014

Medeiazinhas

Parece que os homens também são abusados pelas mulheres: intimate terrorism. Sim, sempre houve chatas, mas esta psicologização da chatice não me convence nada.
Já são muitos anos disto ( 25) e mal de mim se não tivesse uma ou outra ideia sobre o que uma mulher pode fazer a um homem no departamento intímo ( do terrorist, bien compris...). Medeia é a chefe de fila delas. Quem quiser que leia as excelentes traduções, quase todas publicadas na  INCM, da escola de Coimbra, que há muitos anos trago aos blogues ( Maria Helena Rocha Pereira   José Ferreira da Silva  etc). Quem souber inglês e não tiver pachorra tem  aqui um resumo.
Há quem esteja do lado de Medeia ( mata os filhos para os coríntios não os matarem) , há quem torça por Jasão, o marido infiel e malandro. Como quase sempre, nas tragédias gregas, o conflito entre a lei e o sangue, mas Medeia tem o que as chatas não têm: um lugar na  luta real entre o amor e o ódio.
Hoje por hoje, a maioria das chatas ( mal almadas, inseguras, ciumentas, histéricas) nunca conseguiriam sentir nada tão forte. Os homens ficam, assim, a salvo.

quarta-feira, 12 de novembro de 2014

Boa pergunta


Pela enésima vez: Como é possível ele dizer-me num dia que me ama para sempre e no dia seguinte dizer que tem de pensar e depois acabar? No último mês foram mais duas  mulheres a querer saber.
A linguagem é muito sobrevalorizada. O Silva ama a mulher, não pode viver sem ela, por isso mata-a. O Mário-Henrique  Leiria ( Contos do gin tónico) também explica:

Na riqueza e na pobreza, no melhor e no pior, até que a morte vos separe.”

Perfeitamente.

Sempre cumpri o que assinei.

Portanto estrangulei-a e fui-me embora.

Dizer, não custa nada; não dizer, ainda menos.


sábado, 8 de novembro de 2014

Controlo/insegurança


É de importância decisiva para a autonomia do sujeito o temple deste par. É transversal ao desconforto, aparecendo em quadros obssesivos e fóbicos, mas também em sujeitos sem indicação clínica. Um excesso de controlo leva à insegurança - já aqui vimos e se quiserem ( re)leiam a Toca do Kafka - mas o inverso também  é verdade. E mais perigoso.
Um adulto inseguro tem muitas camisolas, mas há uma que veste sempre: procura mais o reconhecimento externo do que confia na autovaliação.  Esta sinalização permanente leva-o a uma monitorização invulgar de todas as reacções do ambiente e isto só pode ser feito através do controlo, imperfeito, mas cansativo e ineficaz.
Uma consequência comum  é, por exemplo, o sujeito acabar por fazer  mais para agradar aos outros do que aquilo que quer realmente fazer. E isto, como compreendem, é uma navalhada  no amor-próprio.

terça-feira, 4 de novembro de 2014

Divórcios, filhos


A diminuição do número de filhos, que começou nos anos 80 ( ao contrário do que dizem os aldrabões ), obrigou a uma actualização dos pressupostos parentais. Depois, a facilitação do divórcio ( agora menos  com a crise) criou uma rede de arranjos artificiosos. No meio, a lengalenga como a que  Goucha repetia, excitado, a um convidado no programa : É muito pior para as crianças um casamento de fachada dos pais". Isto porque o convidado disse uma coisa simples:" Não é à primeira crise que os pais se devem separar".
 O convidado dizia uma verdade óbvia, mas crença de que a vida familiar  deve ser um mix de Ídolos com Rei Leão gera reacções idiotas. O trabalho académico e político do lóbi gay, a partir dos EUA, nos anos 60, ajudou gerações a  acreditar na crença. Em parte compreende-se: a família tradicional execrava a homossexualidade. O problema é que a família era apenas o reflexo das categorias culturais vigentes.
Como psicólogo, tenho encontrado consequências muito piores para  as crianças  em casais que se divorciaram do que nos tais casamentos de fachada. E não é porque os papás se separaram: é porque usam as crianças para as noites ( e dias) das facas longas da vingança e do ressentimento pós-divórcio. Ou seja, os miúdos ficam com o pior do casamento de fachada num divórcio de corneta.

domingo, 2 de novembro de 2014

Oásis depressivo ( suite)

O refúgio pode ser uma tumba. Exagero um nadinha, mas se pensarmos em alguém deprimido, o oasis deixa de ser o lugar  aonde se tem prazer em chegar para ser  um covil  de onde não se tem pressa de sair.
Tenho em terapia algumas pessoas nesta fase. Por exemplo,  uma mulher de 40 e tal, com uma doença grave, uma de trinta e pouco, desempregada,  e uma de vinte e muitos, desiludida com tudo ( e com ela própria). Em comum  todas  serem licenciadas - e  especialistas  -e terem uma má relação com o oásis, embora a de 40  tenha progredido bastante.
É curioso que quando estamos  em baixo o refúgio seja mal aproveitado. Sei muito bem que a inércia triste invade tudo, porque já lá estive, mas também sei que não podemos desperdiçar. Nesta fase, invectivo, literalmente, as pessoas: o oásis está do lado delas e não é tempo de desperdiçar aliados.
Se nem no lugar/espaço/tempo do oásis somos capazes de sentir paz, estamos perdidos.

sexta-feira, 31 de outubro de 2014

E o qual é o teu?


A forma greco-latina  oasis vem do hamítico ou do copta ouhae/ouhi, lugar onde há um poço ( o árabe usa wahah).  Na zorra que  nos conduz, um oásis é como a beleza para a Cristina: fundamental.
No outro dia, dizia a alguém que me relatava as discussões intermináveis que tinha com marido: não estava casado consigo quinze dias.   Ela já é seguida por mim há muito tempo ( de forma intermitente)  e por isso não levou a mal. Eu levei.
Seja um lugar ou  um ritual, precisamos de um ouhi. Pode ser o bar da esquina, o nosso sofá, o terraço, o que for. Pode conter uma pessoa ou não. O que tem é de haver um poço. Ou seja, algo que rompa o trajecto e que nos convide  a demorar.
A felicidade é difícil, como a beleza, dizia Borges ( por que julgam que trouxe  a Cristina?), o oasis é belo e feliz.



quinta-feira, 30 de outubro de 2014

Corpo a corpo

"Sou gorda e pesada - respondeu - mas também sou amorosa". 
Bordenave é o personagem da novela de  Bioy Casares, Dormir al sol ( 1973). É um desgraçado que quer recuperar a mulher internada num hospício. Voltarei ao título porque  tem muito sumo, mas fiquemos hoje com esta tirada maravilhosa.
O corpo está  hoje sob fogo amigo. Recusamos a sua decadência e fazemos  a alegria do IRS de cirurgiões plásticos, esteticistas e ginásios. Ao contrário do que dizem os preguiçosos, a tensão entre o ideal apolíneo e o dionisíaco é velha e clássica.  O corpo belo e perfeito também é velho. O que há de novo é a angústia apolínea. A cinquentona julga que a vida melhora  se eliminar as rugas, a lolita  cuida que tal passa por implantes de silicone nas mamas.
A verdade é que o corpo tem um sujeito que é o seu senhor, não o seu escravo.

terça-feira, 28 de outubro de 2014

Chorar alivia?


"Tens um novo advogado, o dr Bucefálo. Nada na sua aparência  te  faz recordar que ele foi em tempos um general de Alexandre da Macedónia". Adoro o Kafka humorista-depressivo das pequenas histórias  ( algumas nem meia página têm)  e esta é a abertura  de "O novo advogado". Trago-a porque nos pode ajudar a responder à pergunta que titula este texto.
Nem sei quantas pessoas choram à minha frente todas as semanas. O enorme carregador de lenços de papel é mudado de quinze em quinze dias. Este choro é diferente, claro. A pessoa está num contexto terapêutico, costuma aliviar-se ( o que faz muitas  vezes com que eu me veja como um autoclismo). O outro choro interessa-me mais: o solitário. Deixo de fora o choro de alegria, não me interessa nada.
Aprendi que se choramos de angústia antecipada o choro não alivia, mas se choramos por causa do que já se passou melhoramos  um  cadinho. O amargo das lágrimas  depende se somos o dr. Bucéfalo ou um general de Alexandre.

sexta-feira, 24 de outubro de 2014

Do controlo

É uma subforma da obsessão, mas tem fronteiras , exército e governo  próprios. O rei é o medo.
O'Neill ensina melhor do que os psicólogos ( Poemas com endereço,  1962):

Perfilados de medo , agradecemos
o medo que nos salva da loucura.
Decisão  e coragem valem menos
e a vida  sem viver é mais segura.

É isto mesmo que o controlo  nos oferece: uma vida  sem viver. O sujeito vai tecendo, como o pequeno roedor na Toca, do Kafka, mil saídas , mil alternativas, mil estratagemas. Por vezes parece que as coisas lhe correm de feição, o que não admira tal é a energia posta ao serviço.
No final, até a  segurança é apenas um verniz fino.


terça-feira, 21 de outubro de 2014

Essência


Depois de muitos tempo a aprender  em pequenos fogareiros,  há quatro anos que  só grelho em brasas de lenha ( salvo imprevisto)  e numa boa instalação. Oliveira,  pinho, azinheira, galhada avulsas, pinhas, rama de pinheiro, carqueja. A diferença para o carvão  é abissal. É mais difícil porque as brasa de lenha duram menos ( numa instalação urbana), mas o sabor e textura são excepcionais.
Agora  tenho feito com o peixe uma travessura. Em vez de o grelhar, reduzo a combustão ( molho  a lenha) e fumo-o na hora. O peixe acaba no forno  em azeite, alho, limão ( alcaparras no caso do espada, por ex) e com as ervas que cada espécie solicita ( tomilho, alecrim, louro, oregãos, coentros, salva, poejo etc). Persigo, portanto, a essência do fumo de lenha.
Ora bem, para vos dizer que podem fazer o mesmo com as vossas vidas.

segunda-feira, 20 de outubro de 2014

Ansiedade e linguagem

Controlar a ansiedade ( com ou sem a ajuda de ansiolíticos) é quase sempre uma batalha extenuante. Isto acontece porque as pessoas tentam combater  contra um inimigo entrincheirado num terreno mais alto e fortificado. Asneira.  Este estudo carrega nas estratégias cognitivas , mas toca ao de leve num ponto que costumo ensinar : o da linguagem.
A pessoa sente  a angústia, a inquietação, a desconcentração e a tristeza ( deixemos de lado a fala de ar, os suores e quejandos pois são sinais de outra ordem, da crise de pânico) e acompanha com uma liguagem a condizer. "Não me apetece fazer nada, não sei o que fazer, sinto-me ansiosa, quero enfiar-me a dormir 24h etc".
A linguagem que  usamos  para definir os nosso estados emocionais não é inocente. Se estamos na cama com alguém não dissertamos sobre  performances ou tamanhos. Ou seja, a linguagem emocional ajuda a definir o comportamento.  O controlo de que fala o artigo  citado deve começar no  poder de nomear : é a primeira linha de combate à perturbação física da ansiedade.

sexta-feira, 17 de outubro de 2014

Tempo e distância

Cerca de 25% da  relação com as pessoas que tenho em psicoterapia já é online. Elas escrevem e eu respondo, eu pergunto e elas respondem, elas desabafam e eu leio. Este suporte é isso  mesmo, um suporte ao trabalho terapêutico. Não é consulta, não é terapia, não é pago.
Serve de muito. Para já, a escrita  oferece um resguardo do gabinete. A pessoa está no seu smartphone, ou em casa ao computador, não sente  a pressão do terapeuta. Depois, a escrita. Escrever e pensar é muito bom. É certo que a emoção transparece menos ( embora  mais do que se pensa), mas ganha-se em síntese.
Por fim, o principal. Dendy foi quem usou pela primeira vez o termo psicoterapia. Era um místico interessante, mas acertou no alvo: não podemos definir a alma humana, mas temos de garantir as suas necessidades.

terça-feira, 14 de outubro de 2014

Psicoterapia: sucesso e fracasso

A dúvida é um dos nomes da inteligência, arrumou Matamoro na edição que fez do Diccionario Privado de Borges ( 1979). Blas Matamoro  também fez muita coisa finada: um dia hei-de cá  trazer  Cuerpo y Poder- variaciones sobre las imposturas reales. A dúvida então: o que é um sucesso ou um fracasso psicoterapêutico?  Recuso a terminologia. Na dúvida,  opto por vitórias e derrotas.
Ao contrário dos grandes  sistemas  totalitários (psicanálise, DSM, cogntivo-comportamentalistas), gosto de trabalhar  entre Epicteto e Petrarca, reunindo-me  amiúde com S. Agostinho, João do Santos e  Séneca. O velho Freud, o tardio, aparece de vez em quando para o café.
Viver bem é  o alvo. Respeitar a vida, a flecha. Uma vitória  é quando o sujeito consegue viver bem sem esperança. Uma derrota é quando só espera por ela.

domingo, 12 de outubro de 2014

Ruptura



A série, entre  outras vitualhas, serve-nos um curso inteiro sobre a ruptura amorosa. Não sei se a minha guru das  ( boas) séries já  viu a coisa sob esta prisma, como dizem os autarcas, mas arrisco  a repetição.
Quando a série começa, o  par Walter/Skyle  tem cerca de 16 anos de vida em comum, um filho com deficiência física e uma vida pacata. Depois o homem ganha um cancro mortal e a mulher engravida. O casamento sobrevive e melhora. É então que Walter se torna  um druglord das anfetaminas e  a ruptura , ou melhor, as rupturas, se instalam. Em pizzicato.
Skyler, um papel fabuloso, do melhor que  já vi,  representa a mulher inteira e quase-honesta, mas,  sobretudo, a mulher de fibra, a anti-donzela: não se queixa e ninguém  a pisa. É uma combinação encantadora. A sua principal nemesis é a segurança dos filhos.  Quando compreende o verdadeiro alcance das  actividades do marido, agita-se.  A traição de Walter, a sua vida dupla,  não é com uma mulher, é com  a segurança. Os milhões e as mentiras  são o bilhete para Walter  ver Skyler enrolar-se  com o antigo patrão.
Mais tarde,  a ruptura entra numa nova fase. Walter  promete emendar-se e Skyler aceita. O cliché da reconciliação é subvertido: fica-se com o dinheiro e com a segurança.  Skyler ajuda na lavagem do dinheiro. O problema é que as coisas são o que são e Walter retoma  a actividade, ou melhor, as consequências da actividade. Não foi infectado pelo HIV nem engravidou a amante, apenas teve de desatar a matar ex-cúmplices,  é perseguido pelo cunhado, da  DEA, etc.  Skyler,  agora  anti-Medeia,  prefere os filhos e a ruptura não tem retorno. O confronto físico final entre os dois não conta muito, mas  a despedida, sim: Walter assume que tudo que fez não foi, afinal, pela família, mas por ele e para ele.
Este curso geral da ruptura amorosa mostra que, num casamento -  tradicional e com filhos - as prioridades  políticas são negociáveis apenas até um certo ponto. Walter e Skyle têm uma base irredutível, nacionalista, que os afastará sem remédio. O truque, se é que existe, é  nunca ter de  chegar  a negociar a base.


sexta-feira, 10 de outubro de 2014

Zona de conforto


Encontrava este termo em jornais e artigos americanos. Nunca imaginei que  viesse a ser  usado num país com tantos mexilhões e da  nêspera do Mário-Henrique  Leiria.
Tecnicamente, podemos  ver a coisa como um artefacto contrafóbico. Do grego zone, cinto, faixa cintura, para o zona latino, aplicado à geografia. Teríamos assim um espaço delimitado que agora parece significar uma espécie de reserva onde os leões  bocejam para os turistas que vêm ver a África.
Duvido que o mexilhão se sinta muito confortável no mar de Moledo e ainda mais que a nêspera do Mário tenha apreciado o que a velha lhe fez. De certa forma, a zona de conforto é o anti-destino.


terça-feira, 7 de outubro de 2014

Lugares comuns

Benjamin ( Infância Berlinense, 1900) e o telefone:  poucos conhecem a devastação que o seu aparecimento causou no seio das famílias. Conta  como se o pai entregava à manivela até se esquecer de si, dominado pelo transe. Benjamin era mais prático: rendia-me  à primeira proposta que me chegava através do telefone.
No outro dia, uma rapariga estava a contar-me  como tinha acabado a relaçao amorosa. Era uma primeira entrevista apenas destinada  a fazer  a história clínica. Loura plastificada, lânguida, deprimida, responsabilizando todos por tudo, a caneta já escrevia sozinha, coitada. Até que  ela me conta as palavras  finais da ruptura de uma  forma que me acordou: ela estava numa cidade, ele noutra. Por telefone? Acabaram por telefone? Diz ela: sim, por sms.
É fantástico como a  tecnologia facilita  a vida, até  a dos  que não a vivem.

sábado, 4 de outubro de 2014

Inércia & obsessão


No tratamento das depressões, a inércia é um adversário de calibre, sobretudo no quadro da depressão ansiosa ( que este pequeno resumo generalista sintetiza). Os antidepressivos, mesmo os da nova geração, não eliminam o problema. A moleza e a desmotivação, para usar termos simples, variam , claro, consoante as condições do doente. O desemprego, o divórcio e a perda são os principais contribuintes.
As ideias: "não se é capaz de fazer nada", "está-se muito cansado", "nada vale a pena". Dito assim, parece  um estribilho depressivo simples, mas o problema é que  muitas vezes estas ideias são construções obsessivas. Este artigo, como muitos, inverte o jogo: analisa a depressão como efeito da desordem obsessiva. O meu tabuleiro aqui é ao contrário: a ideia obsessiva como subproduto do estado depressivo.
O doente convence-se de que nada pode fazer, ou porque não sabe ou porque não adianta. Esta construção irracional é desmentida muitas vezes pela realidade. Até trabalha, até é bom no que faz, até cuida dos filhos, até tem  bom  sexo. Tudo em menor quantidade, claro, mas tudo está presente. A ideia obsessiva resulta do estado depressivo nestes sujeitos particulares, porque são sujeitos que reagem  de uma  forma muito particular  à depressão. São sujeitos que, por variadíssimas razões, não se sentem à altura  da depressão.
O essencial nestes casos  é  dar vantagem ao estado depressivo. Parece bizarro, eu sei, mas a tristeza é racional, a obsessão não. Uma técnica que costumo utilizar é a de ajustar a baixa expectativa: quanto menos  a pessoa se exigir ( não faltar ao trabalho,  agradar-se quando em vez etc), menos combustível tem o motor obsessivo.

quinta-feira, 2 de outubro de 2014

O affair


Relação extra-conjugal não gosto, sabe-me a pizza com extra  azeitonas. Caso também não: não se trata de um crime ou de um mistério. Affair, ou affaire, fica muito melhor: negócio amoroso.
E é de um negócio que trata. Tive duas mulheres jovens,  que, entre lágrimas, me disseram no silêncio do gabinete que casaram com um  estando já  envolvidas com outro. Quer dizer, combinaram um negócio mas a meio arranjaram novo parceiro. Casaram  à mesma porque o amante já era casado. Sim a pressão social, o restaurante já marcado, pois, mas mais vale um pássaro na mão...
No Amor & Ódio conto outro   caso assaz divertido. Uma mulher enredava a terapia com a indecisão e o sacrifício moral  do affair.  Num belo dia entra-me no gabinete e diz-se  toda contente porque finalmente vai ter a casa com  que sempre sonhou. Moradia, leões de pedra no jardim, piscina. Eu, estúpido, pergunto-lhe se finalmente se divorciou. Ela olha-me como olhamos os insectos ( eu era ainda um nadita inexperiente): Claro que não. É para ir viver com o meu marido e os miúdos".  À minha pergunta de como isso combina com o affair e a situação em geral, despacha-me: Não tem nada  que ver.
No mesmo lugar do cérebro em que nós , homens, temos o comando da genitalia e um pequeno arquivo de mentiras infantis, elas desenvolveram uma sociedade inteira.

segunda-feira, 29 de setembro de 2014

Psicoterapia


O meu gabinete  não é nada disto. Tenho uma secretária preta entre a minha cadeira preta e a cadeira preta  da pessoa. Não tenho plantas nem bolinhos. O único artefacto é uma réplica de  desenhos a preto e branco  de pinguins e cães feitos pelo Picasso. Não é uma sala de amigos, é um gabinete de trabalho.
Para ver é preciso deixar de se ver, dizia o Cabeça de Dinamite a propósito dos psicólogos. Sobretudo, deixar de ver grande parte do mambo-jambo publicado nos últimos  120 anos.  Respeitar a pessoa é não lhe aplicar o que nos tentaram ensinar.
A minha batalha é a da automia do sujeito. Muitas formas de a alcançar, muitas formas de a falhar.



sábado, 27 de setembro de 2014

Política de saúde emocional ( 4)

Tenho vários e pesados volumes, herdados do meu pai,  que reúnem os melhores artigos de congressos mundias de psiquiatria nos anos 60 e 70. Estão arrumados numa pequena secção morta da minha biblioteca e por boa razão. Nesses volumes encontro vários artigos de psiquiatria de, à data, respeitadíssimos professores - portanto, formadores - que garantiam ser a homossexualidade uma doença. Nenhuma novidade, dirão, Não tanto assim.
O movimento  antipsiquiatria ocupou-se também do sexo. David Cooper tem direitos de autor . No seu manifesto antipsiquiátrico, já nos anos 80, Cooper incluia um pressuposto: o fim da repressão de qualquer forma de relacionamento sexual entre adultos. R.D. Laing, outro nome famoso do movimento, questionou, e bem,  a noção de normalidade: normal men have killed perhaps 100,000,000 of their fellow normal men in the last fifty years. Como é habitual nos fanáticos, Laing  não soube parar e escolheu a família como produtora  da esquizofrenia. A seita ( o   negativo da ala  delirante do Tea Party de hoje) adorou: as interacções sociais na  família são asfixiantes, intrusivas e perturbadoras do desenvolvimento da personalidade e da identidade pessoal.  A esquizofrenia  era, portanto,  normal com uma família destas.
Se a imposição biológica e o desleixo cultural ( gays doentes e assassinos normais) serviam um mundo agarrado às velhas concepções do poder  sobre saúde mental, o seu reflexo, o movimento antipsiquatria,  serviu um mundo histérico diante da imperfeição humana.

quarta-feira, 24 de setembro de 2014

Política de saúde emocional (3)

Esta série, longa, será sobre a alteração do anátema: emocional em vez de mental.
Muita coisa mudou na expressão comportamental com a desagregação da família tradicional e depois com a inundação electrónica. Categorias clássicas foram susbtituídas: o papel do pai, a comunicação amorosa, a relação com a expressão material da felicidade ( o consumo),  a potência dos novos antidepressivos,  a organização adolescencial   etc.

Política de saúde emocional ( 2)

Política de saúde emocional ( 1)

segunda-feira, 22 de setembro de 2014

Queremos novos passados

Marie Bonaparte, financiadora do movimento psicanalítico, aluna de Freud, orfã de mãe com um mês  de idade : o nosso sentido da passagem do tempo tem origem no sentido da passagem da nossa própria vida. Quem diz que o passado é inalterável não sabe o que diz. 
O passado é feito de duas categorias: o acontecimento e a  percepção do acontecimento.  Esta é perfeitamente alterável. Um acontecimento ocorrido há vinte anos pode ser hoje sentido de forma tão diferente que passa a ser um acontecimento diferente. Uma zanga de  amigos, uma discussão com o pai, um amor perdido.
Do ponto de vista psicoterapêutico, este  passado sentido conta tanto como o outro. Talvez até mais: é o nosso passado.

quinta-feira, 18 de setembro de 2014

To be or to be


Grande verdade. Outro escritor desenvolveu a ideia, é um livro que aconselho sempre aos perplexos.
As decisões, sobretudo as grandes decisões, tomam-nos como um parasita que nos engole. Quanto mais irreversíveis parecem ( poucas o são) mais  nos colonizam.
A saúde mental depende muito do processo decisório, mas a lalangue psi dedica-lhe pouco espaço. Compreende-se: não é terreno para raciocínios tortuosos nem banha da cobra. 
No aconselhamento temos de conhecer muito bem o sujeito indeciso. Como um detective criminal, temos de saber a marca do desodorizante, a duração dos orgasmos, o IRS. Se nos pedem uma opinião, convém recordar a frase de Saramago. O sujeito  nunca mais será o mesmo.

terça-feira, 16 de setembro de 2014

Realismo depressivo, outra vez

They may be sadder but they are not wiser. Este artigo, saído da religião behaviourista ( no Islão psi,  os comportamentalistas são os sunitas, os psicanalistas são os xiitas), ataca o realismo depressivo. Devemos sempre dar a palavra  aos adversários, mas aquilo é o típico mambo-jambo.
Entendamo-nos. Fulano passa por um episódio brutal. Sobrevive. A patir daí sabe que a vida pode ser terrível. Fica depressivo? Fica. É realista? É. Onde está então a vantagem?
Ela reside nisto: fulano, passando a saber de ciência feita que a vida pode ser terrível passa a apreciá-la muito mais. Recusa o chicote, por isso não o merece. Ou como o louco do Masoch o pôs: a batalha do espírito com os sentidos é o evangelho do homem moderno.
 
 
 


sábado, 13 de setembro de 2014

Do ridículo

Comparo o cair das alturas do coração à queda que se dá de um garboso cavalo: quem nos vê cair pode ser que nos deplore, mas decerto não nos acha ridículos. Se é o grande resmungão que o diz, quem sou eu para contrariar?
Talvez exista uma acentuada diferença de género. As mulheres, em geral,  não precisam vingar a queda;  os homens tendem a matar  o cavalo com requintes de malvadez.

quinta-feira, 11 de setembro de 2014

Aço


Estava há bocado a explicar à C., que tenho em terapia há uns meses, que uma coisa é o problema melhorar, outra é nós melhorarmos. Confusos? Ora vejamos:
Defendo que há coisas que nos acontecem que matam partes de nós. Podem ser genes, episódios, circunstâncias avulsas, o ágape é variado. Ficamos com uma parte doente, aleijada. Ela não tem de melhorar. Uma perda não melhora,  um défice qualquer  pode não melhorar.  O que pode, e deve, acontecer é aprendermos a viver  com essa parte , apesar dessa parte. E aí melhoramos, sim, porque a aritmética não engana: se vives com menos vales mais.
No fundo, é ser humano.  Os nazis fizeram o percurso contrário. O programa T-4  eliminou cerca de 90.000 doentes mentais, ( incluindo 6.000 crianças)  com a ajuda entusiástica da elite  médica e universitária alemã, como  Werner Catel e  Ernst Wenzler. O programa  foi centralizado a partir de uma casa em Tiergartenstrasse nº4, no centro de Berlim ( estive lá perto mas na altura  não sabia e por isso também não sei se está assinalado), daí ter ficado assim conhecido.

terça-feira, 9 de setembro de 2014

Ansiedade, de novo

Somos capazes de mentir descaradamente, somos capazes de nos masturbar, somos  capazes de torcer pelo  Sporting contra o FCP, mas não somos  capazes de controlar  uma crise de ansiedade e o seu valete, o ataque de pânico. Está por fazer um bom estudo filosófico sobre a relação entre as alterações culturais dos últimos 50 anos ( cultura ado, diminuição da natalidade) e dos últimos  150 (materialização da felicidade e síndroma madame Bovary) , que possa  explicar esta incapacidade crescente.
Não, não falo das tretas do Lipovetsky ( prefiro um único e... famoso verso do  Larkin) e da Himmelfarb. O velho Freud andou lá perto, porque ganhou a vida na alta sociedade vienense e por isso soube de coisas meio século antes.
O primeiro antidepressivo do grupo dos inibidores da monoamina oxidase, a iproniazida , foi originalmente  desenvolvido contra a tuberculose. Foi abandonado por incidência hepática mas também porque os doentes ficavam muito, digamos, excitados. O fundo ansioso e fóbico da depressão existencial ( por oposição à endógena)  teve a sua primeira resposta com a iproniazida em meados dos anos 50. Bate certo: os achaques da freudiana sociedade vienense demoraram meio século a popularizar-se.

segunda-feira, 8 de setembro de 2014

Quem come, cala

Orgasmos melhoram comunicação pós-sexo, algum álcool também;  mau sexo cala-nos, mucho álcool também. Continuo a pensar que ele ensina mais do que estes estudos científicos  ( leiam, ou releiam,  a parte VI), mas aceitemos o desafio da oxitocina.
 Mesmo que cumpramos a receita do artigalho, sobra uma insidiosa questão ( que não preocupava Ovídio,  se forem à tal parte VI): comunicar o quê?



sexta-feira, 5 de setembro de 2014

Aproveitar


Insisti sempre, nos livros, nos blogues, no tempo da "Ler" , nesta tecla: desperdiçamos  imenso. Corrijo o tipo da badana do meu Amor e Ódio: esta vida não é uma longa história de sofrimento, antes de desperdício.
Recuso com naifas a treta do que só quando vemos o fim a aproximar é que resolvemos  dar valor à vida. Também recuso o desprezo pelo que há em nome do que virá. São   posições  esquizo-paranóides. Como se o mundo nos devesse alguma coisa.
Ser capaz de criançar a jogar à bola com um filho, fechar um livro antes de adormecer e pensar  na sorte que é ver, comer um pedaço de pão de lei a meio da manhã, seguindo o conselho de Epicuro ( coitado, se soubesse que o seu nome está agora associado a gastrossexuais...).
Aos que desperdiçam, faço minhas as palavras de um croata: recebemos  como recompensa aquilo que vos foi dado como castigo.

terça-feira, 2 de setembro de 2014

Ainda a colonização parental


Desenvolvendo um nadinha o que aqui se espraiou. Ainda que a associemos  à adolescência ou início da vida adulta, a força  da herança da colonização parental encontramo-la nas pessoas maduras, já pais e até avós.
Perdi a conta de maduros que atribuem à herança colonial familiar muitos dos seus problemas, incapacidades, revoltas interiores dilacerantes. Em muitos casos com boas razões para isso, mas não deixa de ser surpreendente a forma como essa atribuição passa um atestado de menoridade às suas vidas adultas. Vale isto para a herança colonial familiar como para as ondas de choque de episódios ditos traumatizantes.
Tento, sempre  que sou chamado a ajudar, bater neste ponto: o que somos em adultos é da nossa responsabilidade. Claro que existem casos pontuais de terrível e imorredoira herança, mas são poucos. Na maior parte das vezes apenas arranjamos uma muleta mental que arquiva as  nossas fraquezas no museu colonial.

segunda-feira, 1 de setembro de 2014

A perda e a criação

 Muito  antes de publicar  sobre a perda já predicava na clínica sobre o sistema que conheço bem demais. Mais do que o trabalho, a única coisa que podemos  opor  ao desastre é a criação. Vem isto a propósito  de uma pequena aposta que  fiz comigo: se aquela mulher ( Judite  de Sousa e só menciono factos  públicos) regressar ao trabalho em três meses, está salva. Ganhei a primeira  parte...
Comparo uma perda brutal a uma cidade bombardeada. Nos dias seguintes não há nada: água, luz, tempo, crianças a brincar. Aos poucos um homem começa  a vender umas batatas velhas, outro descobre um poço e começa  a puxar água, uma mulher  recolhe  dois orfãos etc.
A resposta proporcional, a única que podemos contrapor à destruição é  a criação. Mais nenhuma tem a mesma dignidade e força. Vemos assim que não basta o trabalho. Tem de haver  uma sobreposição ao  fatum e tem de passar pela criação de mais fatum. Pode ser  um novo projecto, um novo amigo, criar leitões, o que quiserem.
Sachsenhausen foi o primeiro campo de concentração  a usar o Arbeit macht frei ( o trabalho liberta) à entrada  ( Hoss copiou-o  depois para Auschwitz). Acertaram, as bestas, mas substituiria trabalho por criação.

sábado, 30 de agosto de 2014

Quem fica e quem vai


Uma das piores consequências da lalangue  psi foi a crença no determinismo das experiências infantis. Pais ausentes, mães  frias, proibições, divórcios etc. Muitos adultos que acompanho estão convencidos de que ficaram marcados e isso determina as suas escolhas actuais.
Quando  chegamos a adultos ( os homens amadurecem mais tarde....) temos  a possibilidade de corrigir. Para isso é preciso fazer falhar a educação que recebemos ( dizia o João dos Santos). Isto nada tem de revolucionário, é apenas inovação. Significa que temos de olhar de novo para o passado e escolher o que queremos  não repetir e o que desejamos manter.
Como em todas descolonizações, tal trabalho  não se faz sem alguma violência. Por exemplo, reeditar a nossa relação com a casa original. Destrinçar  o laço de poder com que ela costuma embrulhar o presente emocional.

quinta-feira, 28 de agosto de 2014

Divórcios

Já não o vejo há muito tempo.  Engenheiro,  casou e teve uma filha. Num pastiche  de novela,  a mulher  envolveu-se com o tipo do ginásio.A menina tinha três anos quando se divorciaram.
Seria de esperar  o rancor e o despeito com a consequente utilização da filha. Pois bem, este homem  combinou  com a ex-mulher um divórcio exemplar no que à educação da miúda diz respeito. Para não vos maçar, um exemplo:
  Estavam separados há coisa de meio ano quando recebeu em casa uma chamada da ex. A miúda fazia uma birra  gótica e clamava  que o pai a deixava fazer não sei o quê  ao passo que  a mãe era má. O nosso homem enfiou-se no carro e apareceu no quarto da miúda com a mãe dela ao lado: Tudo o que a mamã diz ou manda fazer é como se fosse eu a dizer ou mandar.



quarta-feira, 27 de agosto de 2014

Ele vem aí


O distúrbio sazonal ou SAD ( Seasonal Affective Disorder).
Existem centenas  de artigos, quase todos  de volta das hormonas e da quantidade de luz, sem chegar a nenhuma conclusão. O meu SAD  tem dezasseis anos  e prende-se com a coincidência do início do Outono com uma data terrível. É curioso, porque antes dessa data  gostava  do começo das aulas ( era professor), do primeiro cozido do ano, das feiras de vinhos, dos livros da reentré.
Segui uma senhora que tinha o mesmo problema. Como é óbvio, não fui capaz de ajudar muito porque não consegui criar a distância necessária ao problema. O leopardo amoita-se por antecipação e é esta que nos trama. Tudo o que rodeia o período fica  coberto de um  cacimbo que nos fere os ossos.
Bem, para os que sofrem do mesmo há uma boa notícia e é Hesse que a transporta: Pára junto ao roseiral/ sonha com o fim aprazado.

segunda-feira, 25 de agosto de 2014

Odradek

Nas Preocupações  de um Pai de Família ( uso a tradução de Willa  e Edwin Muir), uma curtíssima história de Kafka, aparece este ser, o Odradek. A palavra é  de origem eslava ou talvez a adaptação eslava do antigo alemão. Um ser meio-mendigo meio-pedaço de madeira, quase um espantalho feito de pedaços de roupa velha. Quando fala soa como o restolhar de folhas caídas.
Escreve o pai de família: Estará sempre  a rolar pelas escadas, aos pés dos meus filhos  e dos filhos dos meus filhos. A ideia de que me sobreviverá é particularmente  penosa.
Isto pode ser o que quiserem. Para mim é o que todos os pais sentem: estamos de passagem, estraguemos pouco.

sábado, 23 de agosto de 2014

Os tristes são mais sábios?

Não necessariamente. Nem "tristes" é coisa que devesse caber lá.
O realismo depressivo, que anda  sempre por este blogue,  pode ser catalogado como quem arruma a garrafeira ou a caixa das ervas ( estou sem carqueja), mas interessa-me divulgar um aspecto e não a generalização.
Um ingrediente essencial é a pessoa ter passado  por  coisas que  revolvem as entranhas. Alguns passam a fazer uma conta engraçada: a vida pode ser má, mas é melhor do que má e, por isso, boa.

Pesadelos


Os maiores pesadelos não são  a dormir, como toda  a gente sabe.
Ela, a C.,  é daquelas mulheres  que nunca esteve no meu gabinete  mais de um minuto sem se sorrir  e rir . É  do norte,  tem aquele jeito de restinga ( feitio de fox terrier) , anda pelos trinta e muitos , é bonita tipo gaiata. Fomos trabalhando o que havia para trabalhar ( o feitio...) e tudo se encaminhava para  a conclusão. Eis senão quando.
Ela tem dois  filhos, o mais pequeno arrastava há dois anos uns sintomas da área da endocrinologia. Falávamos  ocasionalmente disso como quem fala do aquecimento global. No outro dia veio a confirmação. O miúdo tem cancro.
Ela vai-me actualizando a coisa no email, eu envio-lhe beijos ( à distância sou simpático). Sei,  bem demais, o que a espera. Na melhor das hipóteses, um longo pesadelo do qual vai acordar esgotada mas feliz. Na pior,   a culpa, o esquadrinhar de todas as decisões, a burocracia do desespero.

domingo, 1 de junho de 2014

Tristeza vai embora


Há muitos. O chucha, o zebra, o rosado do Fundão. Estamos  no tempo deles.
Estás com pressa? Pão de Rio Maior  numa tijela funda. Tomates gaspeados,  azeite fervido com alho ( pronto, microondas), meio deputado de vinagre, oregãos frescos, um ramo de poejo, uma colher de massa de pimentão. Dás-lhe uma troika mansa e um copo de água fria. Azeitonas de Campo maior em cima. Chama-se arjamolho, servi-o uma vez ao FJ Viegas,  um bom-de-boca, que não o conhecia.
Não tens pressa, porque cada dia é um a menos para o aneurisma?  Então agarra neles, tira-lhes as sementes, espeta-lhes  duas pedras  de sal por unidade  e seca-os ligeiramente em forno rotativo .  Desfia um peito de borrego marinado de véspera  em limão, alho  e alecrim ( não esqueças o Blanchot: o desejo é a distância tornada sensível). 
Recheia os tomates com os fiapos de borrego aconchegados de coentros ( poucos, para não terem ideias), canta-lhes azeite do alto e uma rodada de pimenta preta. Forno com a aliança, quinze minutos e mesa. Um justo Quinta de Pancas trina bem com eles.

quinta-feira, 29 de maio de 2014

"Fiz-lhe este cinzeiro, senhor director"


Petrarca consola o viúvo: espera-te  a liberdade, já não tens adversário.
As relações longas e boas são uma espécie  de prisão agradável .Resta saber se, como na prisão dos irmãos Dalton eternamente capturados por Lucky Luke,  o simpático velhinho quer ir lá para fora.

terça-feira, 27 de maio de 2014

Senta-aqui-enrosca-ali


É uma emoção muito animal e muito humana. Quando observamos  ao vivo os bichos, ou lemos/vemos sobre os  costumes dos  que não podemos observar, notamos que o contacto físico  joga um papel  crucial. Às vezes há mal-entendidos. As pessoas julgam que o cão dá pata a pedir festinhas. Não:  o cão põe-nos a pata em cima, é um acto de dominação. O amável  sexo entre os pais ( ou terceiros) presenciado por uma criança pode parecer violento ( às vezes até é...).
Um tipo que gosta de uma rapariga e a namora, põe um bracinho por cima, dá-lhe mão, toca-lhe na face etc. Um tipo que quer violar uma mulher segue-a à saída do bar , agarra-lhe nos braços, empurra-a e puxa-lhe os cabelos ( encontram aqui velhos conhecidos como o Dunbar). O toque  humano ( com ou sem oxitocina) destina-se  a tranquilizar. Já sei o que estão a pensar: Então e o pedófilo velhaco que acaricia as crianças? Por estranho que pareça, a intenção é a mesma.
Mesmo em casas despassaradas,  com horários desencontrados e muita pressa, tem de haver tempo para um senta-aqui-enrosca-ali. Como dizia o Bioy  Casares, a intimidade é comentar o mundo. Por exemplo, um pedaço de telejornal tardio com as pernas dela em cima das nossas ou, no caso dos petizes, adormecer ao lado  deles a ouvir fofocas da escola.

sábado, 24 de maio de 2014

Neuras

"You're so neurotic!" It's a phrase that's tossed about casually, but what exactly is neuroticism? It is a personality trait defined by the experience of chronic negative affect -- including sadness, anxiety, irritability, and self-consciousness -- that is easily triggered and difficult to control. Neurotic people tend to avoid acting when confronted with major and minor life stressors, leading to negative life consequences.

Ora bem. Há a velha história da adaptabilidade dos traços de personalidade. Nos anos  80 e 90 era comum os psis dizerem que a agressividade competitiva, outrora mal vista, resultava da selecção de características apropriadas aos tempos. Nunca comprei muito  isso, porque falta sempre volume para tais conclusões.
Os neuróticos, aceitando que o artigo fala disto pela rama, não são mais do que o inverso do realistas depressivos ( já aqui tratei disto várias vezes). Enquanto estes, por feitio e/ou experiência, esperam pouco da vida e por isso a apreciam e suportam os golpes, os neuróticos  são pessoas  sonhadoras, fantasistas e, eventualmente, mal-amadas. Se fossem bichos seriam rinocerontes.

quarta-feira, 21 de maio de 2014

Precisamos de novos passados


Uma coisa que não podemos fazer na velhice é reescrever a nossa história, isso fica para exercícios destes ( quem sofre de  imaginação errática tem estes escapismos). Como ficamos?
Quem vive no eixo estóico, com mais ou menos dificuldade, tenta sacar o máximo de cada dia. Não, não se trata de aproveitar o dia: carpe diem, em Horácio,  é despede-te do dia. O negócio, como dizem os brasileiros, também não é viver cada dia como se fosse o último ( isso fica para Hollywood e James Dean).
O que se passa é que cada dia é único, total, completo:
 Levantas-te de manhã, bebes café, reservas as férias de Agosto, fazes as contas ao IMI a pagar no fim do mês, enfias-te no carro em direcção a Lisboa, passas a portagem e um velho de 85 anos, em contramão, esmaga-te de tal forma que os bombeiros precisam de duas horas para te desencarcerar.
Tu e o velho , o futuro e o passado, realizam o resto da  promessa de Horácio " e não esperes nada do dia de amanhã".

domingo, 18 de maio de 2014

Bipolar quizz



Este não está mal feito.
A confusão da bipolaridade com traços  ciclotímicos ( este  resumo simples pode ser entendido por qualquer  pessoa) é cada vez mais frequente. Os bichos da foto são as leoas de Tsavo, embalsamadas e expostas num museu americano. Comeram um número indeterminado de coolies ( trabalhadores indianos), talvez 150,   do Lunatic Express, a linha de caminho de ferro que uniu Mombaça a Kisumu, nas margens do Lago Vitória. Tudo very imperial.
Os leões chegam a passar vinte horas por dia a dormir. Não são bipolares porque estão muito bem adaptados ao meio. São ciclotímicos de sucesso.

quarta-feira, 14 de maio de 2014

Desapontei-te, não foi?

Pergunta o Cole. Talvez o João faça essa pergunta ao tempo, que ele apoda de cruel. Prefiro a Yourcenar: o tempo, esse grande escultor.
Talha os traços na nossa cara e  os crentes correm para as clínicas de estética; como se apagar o traço matasse o escultor.
Define os traços da nossa alma. Já não há  sonhos, nem desculpas, e o passado, a única coisa que é nossa ( Séneca) , torna-se um inquilino amável.

terça-feira, 13 de maio de 2014

O elo mais fraco


Nos divórcios, a mulher ( só acompanhei um divórcio gay), quando há crianças, é o ponto de equilíbrio. Em regra. Tenho intervindo em mais divórcios ( com crianças, os outros são simples) do que gostaria, é um kloof cheio de leopardos e mambas negras, e aprendi que se quero ajudar os miúdos devo insistir na mãe.
Ainda há pouco tempo, as criancinhas eram despachadas para a mãe com visitas quinzenais ao pai. A mãe  ficava toda contente  por ter o mesmo trabalho com metade da ajuda. Sim, às vezes nem notavam,  mas isso não as aliviava. Apesar da guarda partilhada, eles continuam  a ter o lombo e elas o osso. É por isso que elas devem ser especialmente apoiadas. Se falham, falha tudo.
É uma injustiça, eu sei, mas, na guerra, se é o combate sangrento/ a decidir, nunca a discórdia/  se ausentará das cidades dos homens. Disse bem Eurípedes ( As Troianas) e acrescento: num divórcio comum, todas as  crianças são Astíanax.

sexta-feira, 9 de maio de 2014

A discussão sobre o amor


Aqui, no post com  a frase de Schopenhauer, foi muito boa. Sobretudo porque, no início, não era sobre o amor: era sobre o casamento.
As tretas do contrato, do droit  du seigneur, da prostituição conjugal  ( tenho cá um livro com esse título, é de chupeta) e afins, dizem-me pouco. O recuo da religião, que apoiava o lado  patrimonial  do laço ( Engels), acabou com o folclore. A emancipação feminina, a luta LGBT  e o resto da  mobilização infinita ( Sloterdijk) em breve permitirão contratos a três ou mais. 
 Passo a vida enfiado na vida das pessoas, já aprendi que os antropóides humanos  só a custo subjugam os instintos. Conto aqui a história da mulher casada  que  tinha um affair há anos e mesmo assim andava  toda contente a fazer a casa nova para ir morar com os filhos e com o ...marido. A nossa condição de perseguidores da felicidade obriga-nos a forrajear sem descanso.
Para mim, o casamento é simples. Para os outros é o que quiserem.


terça-feira, 6 de maio de 2014

Vida real


"This  is not therapy, this is real life". A frase é dita por Seymour Hoffman à irmã. Ele não está para responder a perguntas sobre a sua vida  amorosa. O filme é sobre dois  irmãos e um pai viúvo enfiado num lar.

Viajemos no tempo:

 “It is a lowness of spirits from a single phantasy, without fever; and it appears to me that melancholy is the commencement and a part of mania.

A terapia não é a vida real, mas a vida real  é uma fantasia.

Dobros


O dobro do desejo é o amor e o amor a dobrar é  a loucura. Andei entretido com leituras de Pródico de Ceos e este aforismo apareceu-me à esquina.
Se decompusermos  a fórmula temos problemas: o quádrupulo do desejo é a loucura. Bismarck injectava-se com morfina antes dos plenários no Reichstag? Sim, mas  o que dizer sobre o desejo de uma morte digna? Como classificá-lo de loucura?

sábado, 3 de maio de 2014

Lobo Xavier antidepressivo


Nunca mais soube nada do homem que ia mudar de vida e abrir um restaurante. Ou correu muito bem ou correu muito mal. Ou assim-assim. Continuo na minha: cozinhar por obrigação é como ter sexo  por obrigação. Na série de artigos que fiz sobre  comida na Ler não cheguei a sublinhar com um remate de longe: o lado antidepressivo da coisa.
Abrir o frigorífico ou a gaveta do pão e engolir uma sandwich ou um resto de massa com cogumelos é alimentação. Antidepressivo é isto:
Escolher o bacalhau, demolhá-lo como quem muda  um bebé,  afogá-lo de véspera em azeite com alho, poejo, tomilho e deixá-lo de noite, aconchegado. No dia seguinte,  amorná-lo duas horas a 70º. Lascá-lo com jeito de ourives e servi-lo mimado com rolos de espinafres colhidos no dia.
Ou seja, nunca podes estar deprimido se trabalhas para o prazer, para  o dia e para  a memória. Já agora, parabéns, António ( o melhor presunto que provei  veio da quinta dele).

quinta-feira, 1 de maio de 2014

No amor e na guerra...

Este capítulo faz parte do livro publicado em 2006:
"Understanding how sexual aversions develop in addition to how sexual attraction operates will provide a more comprehensive picture of mate selection in humans". 
 (...) On this basis, the authors concluded that romantic love is a pan-human characteristic. There is considerable evidence that they are right". 

A aversão sexual e o ódio serão, portanto, também  pan-humanos. O que interessa é saber como a cultura está aperfeiçoar o equilíbrio.

terça-feira, 29 de abril de 2014

Tazkiyah



 Alá contra a compulsão:


"Q: Can the contemporary psychology/psychological techniques enrich the process of tazkiyah?
AbdelRahman Mussa: Following on from that, it’s not that they enrich the process; it’s that they are new tools that can be applied. For instance, if someone has Obsessive-Compulsive Disorder or has another bad habit, then different techniques can be used to help with those bad habits, and thus, achieve the necessary step of purification so that this person in question can then follow the guidance sent from Allah (SWT)".

(daqui )

domingo, 27 de abril de 2014

To fancy each other


Esta expressão inglesa é usada por Schopenhauer ( A Metafísica do amor) , um leopardo muito cá de casa. Quer ele dizer que o primeiro passo para a nossa  existência, o punctum saliens da vida,  é esse instante em que os nossos pais  começaram a amar-se: to fancy each other. Isto é de outro mundo.
A regra hoje é o petiz ter  duas casas bem antes de  aprender a ler. Não sei se fará  muita diferença, as crianças adaptam-se a tudo - a pais por decreto, a pais que se odeiam etc -    mas fico sempre a pensar como a cultura desenvolveu este sistema.
O casamento para  a vida  é antinatural, foi feito pela cultura, como  a poesia ou a bomba atómica, mas parece que ela agora  resolveu outra coisa. Not so fancy.

sexta-feira, 25 de abril de 2014

"Yo creía que mí vida era mía"



Nunca é nossa. Anquises sabia-o: não tem vida florescente o  homem que se deita com deuses imortais.

quarta-feira, 23 de abril de 2014

The bottom jaw





Estes dois unificam todos os pares comunicacionais. O cingalês tem de aprender a língua do inglês ( império oblige), mas o truque está na forma como se mexe o maxilar de baixo.
Ou seja, não importa tanto o que dizes, mas como o dizes.

terça-feira, 22 de abril de 2014

Emorracional

A pagina tantas diz-me ele, casualmente: sabe como é, os afectos são irracionais. Ele é um homem. Um bocadinho ciclotímico, inteligente, anda pelos trinta e muitos, dedicadíssimo a actividades profissionais, pai de um filho bebé. Contradigo-o: os afectos podem ser racionais. E muito.
Esta ideia da irracionalidade das emoções há-de ser abandonada quando soubermos mais sobre o cérebro. Por enquanto aconselho vivamente este artigo.
Quando  vocês tiverem  um bebé nos braços, ponham-se em frente a um espelho. Depois digam-me se os afectos são irracionais...

sexta-feira, 18 de abril de 2014

Pessa'h


Marie Bonaparte: O nosso sentido de passagem do tempo tem origem no sentido da passagem da nossa própria vida. Então, como sentir  o tempo que não passámos com quem desapareceu? Bispo duas hipóteses.

1) A religiosa.
O humano religioso, como dizia Eliade,  vive o mundo como não-homógeneo: parte sagrado, parte neutro. Há sempre uma perda primordial que rompe a realidade  dos objectos. Assim, o tempo que não pássamos com quem morreu, pertence não à nossa própria vida mas a um arquétipo que nos ultrapassa. Somos esse tempo.

2) A mutilação
 Perdemos a pessoa e perdemos o que era nosso com ela. Aceitar a mutilação, sentir esse tempo como  o amputado sente o membro-fantasma.



terça-feira, 15 de abril de 2014

Quasimodo

Já o trouxe muitas vezes em séries de poesia italiana ( noutras andanças de livros e blogues), hoje cedo-lhe, aqui, a palavra para nos definir a angústia:

Ognuno sta solo sul cuor della terra
traffito da un raggio di sole:
ed e subito sera.

tradução minha:

Todo o homem está sozinho no centro da terra
atingido por um raio de sol:
e de repente é noite.


segunda-feira, 14 de abril de 2014

Toynbee



Depois de Magnésia ( na figura) , as coisas correram depressa. Virados outra vez a sul, Catão , a rábula dos figos, cerco e incêndio de Cartago, fim. O que me interessa é  a discussão sobre a tese de Toynbee: quanto tempo dura  a devastação? Dizia ele  que o sul de Itália ficou árido e entregue ao latifúndio por causa dos treze anos de depredação de Aníbal. Toynbee caiu em desgraça,  a tese era arrevezada. Ou não.
Mudemos das sociedades para as pessoas. Quanto  tempo dura a devastação? É possível alguém fazer escolhas, ajustar modos de vida, organizar-se,  em função de um dramático episódio antigo? Foi para fugir à psicologização e ao trauma, que escolhi partir de uma tese histórico-política. É necessário mais do que  um episódio, uma série:  e que transforme, de facto, a vida da pessoa.
As perdas e as doenças graves encaixam bem, são aníbalescas. Os seus efeitos prolongam-se muito para além do que se possa imaginar. Quanto mais não seja porque  ficamos  diferentes. É, portanto, imperioso voltar  a reconhecer o território. Será sempre tudo novo.