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domingo, 29 de setembro de 2013

Não ser dois






Ele há definições que  só os engenheiros da alma humana ( como Estaline  baptizava os escritores) são capazes . Já andámos de volta do realismo depressivo, sublinhando o carácter homoclítico, sólido, pouco sonhador. Existe uma terra verde  entre esses e os depressivos e nela habitam  Diana e o  herói  de Bioy Casares ( o grande amigo de Borges ). O homem incapaz de amar prefere  a mulher instável  e firme, pecadora e decente. Têm de ler a finíssima problemática da fixação de dunas para entender, mas o tom está dado.
 E o tom é a combinação negativa. Mil vezes preferível ao "Eu e o Rúben completamo-nos". A combinação negativa permite, como lembra Bioy, que cada um seja como é. E  eu acrescento: e que nenhum seja os dois.


sexta-feira, 27 de setembro de 2013

Em pathos

No post anterior, os leitores-participantes  estiveram muito, muito bem. Quase senti empatia com eles.
É um ingrediente tramado. No outro dia, uma mulher abriu a conversa sobre o marido suicida com " Pois  o fulano não se lembrou de mais nada". Tiro de .570 Nitro. Não consegui empatia nenhuma durante  toda  a consulta. Foi desconfortável.
Fora do gabinete sou  muito  pouco empático - por isso abri este post como abri - , mas lá dentro é diferente. Então quando a coisa envolve mortes alcanço um estranho e elevadíssimo  grau de empatia com os sujeitos. Nada de marmeladas, antes pelo contrário. Confronto, arrisco, mas sempre  num clima de solubilidade impressionante, mesmo com gente que acabo de conhecer. A frase daquela mulher inibiu-me. Durante  uns minutos detestei-a. Não vos conto o resto, mas tinha ,  e  tem, boas razões para  a  amargura. Registei, mas não consegui, e ainda hoje não consigo, sentir com ela.
Podemos  ser  e não ser empáticos? No meu caso não é pose, acreditem. Sou pouco empático porque sou egoísta, diletante e tenho défice de atenção. Já no gabinete, sobretudo nos tais casos, sinto-me convocado para a guerra.

quarta-feira, 25 de setembro de 2013

O fogo ao pé da estopa

Depressão, colesterol elevado, menos  actividade sexual. Aparentemente, sem  relação.
Talvez não. Peguemos  num dos serranos do Candal, terra do Louzã Henriques, e imaginemo-lo. Deprimido, com colesterol elevado e sem pavio?
É claro que tudo é possível, mas também há muito tempo  que se discute o perfil psicológico do homem avançado. Desde o velho Freud  ( mesmo velho, dos últimos dias), que sintetizou com acerto:

-  3 causas da miséria: o nosso corpo, os outros, o quotidiano.
-  3 remédios: as satisfações substitutivas, as distracções, os estupefacientes.

Darei seguimento  a isto,  mas para já  fiquemo-nos pela  análise  da terceira  causa. As doenças metabólicas, as rugas, a barriga etc. Os outros:  as relações. Pais, mulheres, maridos, filhos, vizinhos, colegas. O quotidiano, por fim: o que é? No tempo do Freud tardio, era uma brincadeira comparado com o de hoje. Dizem os progressistas que estamos melhor, dizem outros que estamos mais apertados. Pouco me importa.
O fogo ao pé da estopa até o diabo lhe assopra. As depressões aumentaram com a sociedade de bem estar ou foi ela que deu resposta à tristeza que sempre existiu? Respondam vocês, que chegou o Outono, a coisa das folhas caídas.

segunda-feira, 23 de setembro de 2013


A fórmula é de um poema de Lonfellow e aprendi-a no A  Chinela Turca, de Machado de Assis: "Never-for ever!/ For ever-never!". Parece duplipensar, mas é mais do que isso, porque desliza bem à mesa dos projectos que as pessoas fazem. Cada vez mais me convenço de que boa parte da angústia - e do IRS associado, a ansiedade -  vem do peso das ilusões.
Desejar, sonhar, planear. Sim, tudo inócuo, no mínimo. O problema é quando compomos o futuro a partir do nosso disfarce de Deus.

sexta-feira, 20 de setembro de 2013

De peso

Anda nos trintas, pesa 80kg, nunca teve um namorado, há história familiar depressiva. A pulso, com uma ligeira ajuda minha, estudou, formou-se ( enquanto trabalhou) e agora espera. Duas coisas: uma colocação profissional e um corpo que não chega. Fez sempre tudo o que lhe pedi. Lutou como eu não lutaria, nunca desistiu, caiu e ergueu-se vezes sem conta. O corpo é a mortalha da vontade.
No outro dia disse-lhe para parar. Aceitar o que é. Nos chats de engate incomoda-se. Com  a linguagem porcina, com um mundo ao qual não pertence. Um par de más experiências e voltou à estaca zero. Quem me pega?
E é assim. Tantas vezes de volta de mortes,  divórcios sangrentos, ruínas financeiras e é a porcaria da balança que me deixa sem cartuchos. Aceitar o que é. Parece fácil ficar à mercê de imbecis que se vão aproveitar da sede.
Depois  há a biografia dela. Tenho a impressão de que a S., uma vez mais, me vai dar uma lição.


terça-feira, 17 de setembro de 2013

Cláusulas


No outro dia, uma senhora deu ao meu gabinete uma luz especial. É minha leitora ocasional ( dos livros e daqui) e talvez sorria ao ler isto. Contou-me ela que fez um acordo de infidelidade com o companheiro. Até aqui ( tens de me contar/ não te podes apaixonar etc) nada de novo. Brilhante mesmo foi uma cláusula especial: a infidelidade teria de ser limitada geograficamente. Sem entrar em detalhes: podia ocorrer  numas zonas do globo e noutras não. Parece bizarro,mas tem uma explicação: certas zonas eram exclusivas da relação.
Fiz uma associação entre isto e uma das luvas que calço quando penso no vínculo humano mais estreito. Refiro-me a qualquer relação, portanto,incluo a que temos com os nossos filhos ou com o Benfica. O melhor que nos traz o amor é fazer-nos melhores. Eu sou melhor porque a minha mulher, e outras antes,  e os meus filhos me fizeram melhor. Não foi um grande avanço, mas sempre foi alguma coisa.
Ora, a cláusula descrita é apenas uma extensão de outras não-escritas  que existem por aí aos magotes. No par mamã-filho, conheço maduras que se gabam de nunca terem feito sacrfícios pelos filhos, julgando assim expurgar o vínculo de qualquer ar de peso.  A cláusula da nossa dama concede à relação amorosa a capacidade, ilusória,  de existir como se não houvesse pessoas.Como é bom de ver, há pessoas e pessoas que ignoram cláusulas.  Resultado: vendemos a alma ao diabo.


segunda-feira, 16 de setembro de 2013

Pais sargentos

Muitos miúdos vão começar os seus cursos universitários, o que significa, para mim, que daqui a uns meses algum aterrará à minha frente, desalentado com a escolha. A crise  mudou alguns hábitos de selecção? Talvez, mas não mudou o problema dos papás que querem o filho médico ( so to speak).
Já tive gente a desistir no terceiro  ano, já tive gente a querer mudar antes do Natal. Deixemos de lado os casos em que a opção foi inteiramente assumida pelo jovem e centremo-nos nos outros. Por que motivo  há paizinhos que escolhem o curso dos filhos?
É nas manadas de pais-doutores que tenho registado mais asneiras. Da influência pouco discreta à quase exigência, são pais que querem escolher pelos filhos. Uma variante do complexo de Napoleão: o meu menino tem de me dar motivos de orgulho, a minha menina é sobredotada.
Esta posição egótica revela quase sempre um entendimento da prole como uma extensão do ego. Frequentemente, o resultado é desastroso e o trabalho terapêutico vê-se a braços com uma dupla tarefa: resolver a sensação de fracasso e restaurar ( ou inaugurar...) a autonomia do miúdo.

quinta-feira, 12 de setembro de 2013

Obsessão e memória


Sebald conta a história de um escritor do pós-guerra na Alemanha, Alfred Andersch. O homem tinha  a necessidade obsessiva de se confessar. Ficou na Alemanha nazi.O interessante, como nota Sebald, é que apesar da obsessão  em se justificar, a memória de Andersch opera selectivamente. Ora aqui está o osso.
As desordens obsessivo-compulsivas apoucam as pessoas. Quanto mais inteligente for o  sujeito mais ele se ressente da irracionalidade da doença. Recordo uma mulher, pequena empresária nortenha, que durante anos nutriu a obsessão de que se tinha envolvido com um  vizinho. Ela nem falava com o homem. Pois bem, muitos anos mais tarde desenvolveu a obsessão de que a a filha mais velha se ia envolver com um dos filhos do sujeito.
Qual é o problema da memória? É que   a memória selectiva do obsessivo-compulsivo alimenta a irracionalidade do sintoma. Por exemplo, a mulher da história, quando incorporou a filha e o filho do sujeito na ideia obsessiva,   obliterou com cuidado a sua própria biografia: nunca falou com ele, casou-se, teve filhas. A obsessão é intemporal e amnésica.

terça-feira, 10 de setembro de 2013

Cozinha, depressão & liberdade

 ( dedicado ao Vasco Lobo Xavier)

Acompanhei-o durante algumas sessões. Quarentão, trabalhava numa empresa, estava farto, daí  a ansiedade e algumas notas depressivas. Também gostava ( gosta ainda?) de cozinhar, de maneira que reservávamos sempre alguns minutos finais para trocar ideias. Ainda que  um bocado impressionado com a aportuguesação das técnicas do Can Fabes e similares,  a sua referência era ( é?) a nossa cozinha tradicional,  Meteu na cabeça mudar de vida e , em plena crise, abrir um restaurante. Isto mexeu comigo.
Ele pensou ( nunca  disse abertamente) que eu o dissuadia por inveja, que também eu gostaria de fazer o mesmo.Não gostaria, porque quero muito à  boa mesa, à cozinha, à  procura do nabo perfeito, da ervilha com sabor autêntico, da garoupa com sabor  a garoupa, de umas costeletas que um velho talhante me envia de uma  aldeola ao pé de Vinhais. Sobretudo gosto  da liberdade. Se me apetecer complicar e fazer uma galantine de percebes em toupée de polenta, faço.
Isto remete-nos , como dizem os tipos das mesas redondas, para a questão da realização pessoal, essa espécie de mamba negra disfarçada de Cinderela.  Não há uma realização pessoal, muito menos via profissionalizante. O humano realiza-se, já que temos  de usar a palavra, em muitas coisas e em muitas medidas diferentes. Essa invenção da cultura da especialização é uma cena que não me assiste.
A certa altura,  indaguei dos  pratos principais e assim. Fala-me em bacalhau na brasa, afinal,  na chapa ( a fraude restaurativa começa no ovo) . Perguntei-lhe então se se via  a chapear  800 postas de bacalhau  por ano.

domingo, 8 de setembro de 2013

Abóboras


Antes de morrer, já no hospital,  uma  amiga/doente chamou-me. Depois do pow wow habitual nestes casos,  diz-me: Filipe, tenho lá uma abóbora para ti, para fazeres as papas. Durante muito tempo arrumei isto na lucidez alucinada. Só agora começa a fazer sentido.
Ela não disse que me ia levar a abóbora  a casa  nem mencionou qualquer cenário de alta hospitalar no qual me pudesse receber em sua casa com uma abóbora de presente. O que ela disse foi que tinha uma coisa para mim, ou melhor, que me queria ter dado uma coisa. Se leram A morte de Ivan Ilitch, que,  já escrevi várias vezes, é um manual de educação para  a morte ( o verdadeiro), compreendem a inquietação. Tudo tem a ver com o tempo.
À vista do fim certificado, o tempo aparece pela primeira vez  amputado de uma dimensão. Como já não tinha futuro, a minha amiga/doente resolveu a equação: ela tem lá ( presente e passado) uma abóbora para eu fazer as papas: o futuro é para os outros e, neste caso, com doçura.

quinta-feira, 5 de setembro de 2013

Estradas


Ou leram o livro ou viram o filme . Espero que tenham lido o livro. Muito mais do que o cenário apocalíptico e o frisson do perigo, a essência é o instinto de protecção. O churrasco de bebé não está lá só para impressionar: tudo é possível. Em princípio.
Por que motivo os laços se apertam quando o ambiente é mais agressivo? Errado. Não se apertam mais, estiveram sempre apertados.O que acontece é a naturalização do processo, como se a verdadeira matriz  da protecção e da responsabilidade se descobrisse quando é mais necessária.
Nos divórcios azedos, fico sempre fascinado com a facilidade com que alguns pais usam os filhos para o acerto de contas. Não lhes parece ocorrer que não há muita diferença entre isso e deixá-los sem almoço ou  livros escolares. Tudo é possível em princípio? Sim, até não entender que num divórcio os filhos estão na estrada.


terça-feira, 3 de setembro de 2013

Mais alianças

Nenhuma  parte da nossa vida está tão exposta ou vulnerável como aquela que mais amamos. Se compararmos isto com Freud - somos um corpo exposto a mil feridas -, percebemos a distância entre  a leitura de ligação de um clássico ( Séneca) e o solipsismo hodierno. Sim, a ferida pode ser a perda do outro, mas o acento é sempre o sofrimento pessoal, enquanto que em Séneca é  a dependência do outro: a nossa vida é o outro.
Alianças, ligações. Não precisamos de viver muito para compreender o peso delas, mas, e falo por mim, a minha profissão foi-me obrigando a descobrir-lhes novas qualidades. Nestes tempos de dureza material, tentei fotografar como elas se reequilibraram. O  dinheiro é uma categoria escorregadia para estes assuntos, mas também é um bom teste.
Noto, em pessoas que até já acompanho há muito tempo,  que o empobrecimento não revela piores facetas onde havia laços de sangue . Já nas alianças orgânicas ( por oposição às mecânicas durkheimianas) , a coisa pia mais fino. Se há uniões/casamentos que estão a sobreviver, sobretudo as que têm filhos, o tom geral é de individualismo. Bem, a selva quando nasce é para todos.

domingo, 1 de setembro de 2013

Sad


O nome técnico é Seazonal Affective Disorder.  O povo sempre falou no cair da folha e no rebentar da folha. Poupemo-nos à descrição  perfunctória e avancemos: Sentes a mudança? E de quê?
Pertenço ao grupo dos que  reagem mal à mudança. Não pela mudança em si, mas pelo processo.Por exemplo, o período que antecede  o início das aulas dos miúdos. Ou aquelas primaveras bizarras em que a noite ainda não chegou  às sete da tarde ( ou da noite?) , mas chove e faz frio. Como eu, muitas pessoas sentem o desconforto da passagem de ciclo, porque é uma  passagem.
É claro que o SAD, o verdadeiro, o da bayer, bate mais forte. Seja como for, o princípio é o mesmo.Talvez haja algo de natural nisto. Sentimos que o  ambiente muda  sem sermos ouvidos e que temos de nos adaptar. Confiro na clínica  que aqueles que também já passaram por situações terriveís  e inesperadas são mais susceptíveis de sofrer da forma ligeira do SAD.
Como sempre, a fórmula é presentificar. Projectar  para o  dia que ainda corre (  quam minimum credula postero...) coisas que dependam da tua vontade. Coisas boas ou coisas difíceis que tenham de ser feitas. O apaziguamento decorre da ilusão de que tudo muda, mas muda devagar.