email para contactos:
depressaocolectiva@gmail.com

sábado, 27 de dezembro de 2014

Não me dês a pata


Adoptou-me ao ponto de protestar sempre que os da casa me abraçavam, permanecendo indiferente aos abraços entre eles. Até ficar doente, não houve uma única vez em que, sentindo  a chave na porta, não me tenha vindo saudar como se possuída. Mesmo quando eu  demorava apenas cinco minutos para ir à garagem. Era, claro, um ser irracional, tal como o bebé de ano  e meio que vem a correr para os braços do pai, acabado de entrar em casa,   que retribui  imitando  o Alien dos filmes da Sigourney Weaver. As grandes  perdas incluem elementos cénicos  fossilizados.
Como nas cidades já não temos rebanhos e não caçamos nas ruas e  esplanadas, sobra  a protecção pessoal como última razão para ter um cão. Sendo os labradores, os King Charles Spaniels ( um must  da  moda estes) e outros mini-cães os mais comuns nos prédios, também esta última razão desapareceu. O real motivo, hoje, é querermos  ser amados de   foma incondicional por um ser irracional. Rima e faz  sentido.
Ainda bem que o laço humano não é incondicional. Ainda bem que os outros não estão lá sempre prontos para nós, a  dar à cauda e  indiferentes ao nosso humor. O anqueo humano é sujeito à manipulação, ao equilíbrio, à culpa e à rejeição. Para além disso, não lambemos os nossos próprios  genitais.










sexta-feira, 19 de dezembro de 2014

Largos rios têm cem obsessões


Nem sempre é fácil distinguir o amor da obsessão. Excluo aqui as formas doentias  de posse disfarçadas de amor. O leitor perguntará: Mas... então não é dessas que quer falar? Não.  Os e as narcisistas e/ou neuróticos que usam a relação para sobreviver, não me interessam nesta discussão porque a fadiga obsessiva, a existir, não é com o outro, é com os ganhos da relação. 
O mato fechado  é o de adultos bem consigo e com a sua história, mas que só a querem escrever com uma determinada pessoa. Chegam  a partilhá-la, se necessário, suportam hesitações, desvios, ausências. Querem é ficar com ela como um prolongamento natural da sua existência. Não é preciso psis para descrever, René Char fá-lo muito melhor:

Au bout du bras du fleuve, il y a la main de sable qui  écrit tout ce qui passe par  le fleuve.

terça-feira, 16 de dezembro de 2014

Dentro da insegurança


Kipling, "If":

If you can dream - and not make dreams your master,
If you can think - and not make thoughts your aim;
If you can meet with Triumph and Disaster
And treat those two impostors just the same;

Não consigo convencer toda  a gente da conveniência da linha estóica, eu sei.  
A ideia de nos projectarmos no futuro é venenosa,  leva-nos a desperdiçar quase tudo, mas é um veneno  poderoso. A ideia de controlarmos as nossas vidas, e a dos outros, e a crença de que podemos reparar as injustiças do passado são sherazades  igualmente letais e maviosas.
A religião e o realismo depressivo fornecem defesas robustas, mas nem todos as conseguem aplicar. Envolvem  uma diminuição da nossa importância relativa, ou, se quiserem, do nosso narcisismo infantil.
Sobra a inteligência: recomeça sempre, aproveita tudo, o fim é igual para todos.


sexta-feira, 12 de dezembro de 2014

Quem tem medo do lobo mau?

Já tinha saudades. Ontem, uma rapariga que tenho em psicoterapia, instada sobre se o Natal lhe provoca neura, respondeu-me: Não! Adoro o Natal.
Talvez seja uma coincidência a rapariga ( 22 anos) viver numa família daquelas que os teóricos marxistas-feministas-deleuzianos chamam de prisão neurasténica:

The entire industry of psychotherapy is based around trying to straighten out what was done to people by their family and trying to get them to get them to stop doing equally horrible things to the people within their family structure

segunda-feira, 8 de dezembro de 2014

Os sacríficios pelos filhos: mitos



"Fui uma sacrificada" e "sacrifiquei-me toda  a vida pelos filhos" são linhas emocionais que emparelham bem com "não estou para abdicar da minha liberdade por filhos" e "não preciso de ter filhos para ser feliz". Todas estão certas. As duas primeiras porque é assim que a mulher se quer definir, as duas segundas porque filhos são opções  e não são essenciais para a felicidade. 

Todas estão erradas:

1) Mesmo nas condições mais terríveis ( por ex, campos de refugiados e/ou pobreza extrema), uma mãe  emocionalmente saudável não sente como sacrifício abdicar de um pedaço de pão velho para  o filho. Já numa cidade europeia, uma rica mãe talvez julgue ser um sacrifício continuar casada ou perder uma hora  de sono por causa da criança, mas é uma ilusão: a manutenção do  casamento  dependerá mais da manutenção do nível de vida e  uma hora de sono recupera-se não trabalhando tanto para pagar o silicone. 

2) A nossa liberdade depende de muita coisa: do regime político  em que vivemos, do nosso amor-próprio, de termos sido amados ( ou de superar o inverso), de sobrevivemos à inveja doentia. De filhos não depende de certeza. A nossa suposta  felicidade são bocados soltos de tudo o que  a vida tem e filhos são vida. A menos, claro, que a mulher imagine que não ir passar o fim de semana fora sempre que lhe apetece é uma limitação à sua liberdade ou que a felicidade é fazermos o que quisermos; como os velhos comedores de ópio.


Lembro-me de uma senhora do povo, duriense, que contra a vontade do marido escolarizou as cinco filhas. Passou trabalhos piores do que os do Benito Prada.  Disse para a televisão: Sacrifício? Que disparate. Fiz com todo o gosto e voltaria a fazer. Quanto à liberdade e à felicidade, entendidas como no ponto 2, cruzo-me amiúde  com  uma mulher  que passeia todos os dias dois cãezinhos impecavelmente vestidos: Dão imenso trabalho, nem queira saber, mas são tão queridos..



sexta-feira, 5 de dezembro de 2014

Intimate partner violence


Pois aqui é que a porca torce o rabo. Quando trabalhava na área das drogas, e estava actualizadíssimo nesta matéria, os estudos de que dispunhamos eram claramente favoráveis ao haxixe no que se referia a violência doméstica, absentismo laboral  e acidentes no trabalho. Houve até um pequeno escândalo, nos anos 90, porque os EUA censuraram estas conclusões.
O osso , no entanto, é outro: até que ponto o intimate conflit deve depender de drogas? Bem, é mais frequente  do que se pensa, se em vez de drogas ilegais pensarmos em drogas legais - ansiolíticos, antidepressivos e neurolépticos.

terça-feira, 2 de dezembro de 2014

Estado da arte: culpa e redenção


É um objecto quase perfeito,  não fora o final  pitoresco  sobre o   Port Vale XArsenal na War Cup
É um episódio  quase todo sobre  a culpa. O psiquiatra polaco, cuja família morre em Majdanek e que  sente a culpa dos sobreviventes, e   o aviador britânico,  bombardeiro de  civis em Hamburgo, cuja mulher se envolve com o médico dele.
Depois, o triângulo principal. Ela recebe de volta o marido, soldado libertado de um campo de prisoneiros alemão, que não acha graça a amizade entre  a bela  o monstro (  um prisioneiro de guerra alemão que a ajuda na quinta). Ainda há um rapaz que foge para Hastings ( onde se passa a série), porque estava farto de levar com a raiva das mulheres  a quem entregava os telegramas a anunciar a morte dos maridos ou dos filhos na frente  de guerra. Nicholas Ray  também filmou a culpa, o amor e a guerra  nesta outra delícia, mas num quadro  mais restrito. Broken Souls é  avassalador.
É quase todo sobre a culpa, porque reserva  um pedaço para redenção. O psiquiatra, enlouquecido pelas notícias sobre Madjanek,  acaba por matar o prisoneiro alemão porque este o empurra ( cai  na valeta, como todo o judeu) e o manda afastar-se, em alemão brusco. Quando Foyle lhe diz que haverá atenuantes, o psiquiatra responde que não:" todos tínhamos vidas normais até 1939". A bela resistiu à tentação de se deitar no feno com o vigoroso ajudante alemão durante  quatro anos e parece a única  não-culpada, mas é engano: sabia que o alemão estava doido por ela e alimentou  o sentimento como uma muleta para a solidão. Quando ele morre, julga ser o marido o assassino e deprime.
A origem da palavra redenção remonta ao latim: voltar a comprar, do verbo red-emere, o "d" em "re" usado, no latim antigo, antes das vogais. Ou seja, comprar de novo a inocência. Fica para depois...