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segunda-feira, 24 de abril de 2017

Diário de um psicólogo (38)

Na clínica passo às pessoas uma mensagem cada vez mais  ambiciosa e difícil : O dia chega ao fim sem os teus se  terem  magoado,  nem teres magoado ninguém,  e as tuas pernas mexem-se? Então foi um grande dia.


Ser um  conservador ( sobretudo da liberdade) em vez de um reaccionário, permitiu-me comer os melhores filetes  que já fiz: os de bacalhau fresco.

quinta-feira, 20 de abril de 2017

Diário de um psicólogo ( 37)

Casanova foge para Munique  na companhia do padre  Balbi ( que fazia amor desastradamente  com todas as criadas das várias estalagens em que ficaram)  e encontra a condessa Coronini, uma conterrânea ( veneziana) de 71 anos. Esta promete dar ao príncipe  Eleitor  uma palavra em favor  de Casanova ( sabe-se lá porquê...)  e lá vai ele reunir-se com o confessor  do Eleitor, um jesuíta. 
O padre conta-lhe que a cidade está envolvida num milagre: o corpo da imperatriz, ainda em exposição pública, mantém os pés quentes. Casanova foi confirmar. Sim, os pés continuavam quentes, porque virados para  uma lamparina acesa.
O  verdadeiro milagre é sempre  a crença  das gentes.



No outro dia voltei a fazer o número. A mulher, distraída na sessão, permanecia alheia a qualquer trabalho intelectual. De repente varri para  o chão quase tudo o que tinha em cima da mesa. 
- É para você prestar atenção. 
- Fiquei foi assustada...
- Ora  aí está.

quarta-feira, 19 de abril de 2017

Diário de um psicólogo (36)

O  episódio dos miúdos no hotel espanhol é um epítome da doença de uma  geração: da minha.
Engarrafam mil miúdos num autocarro para a viagem que lhes dizem ser  a da vida deles e enfiam-nos num hotel. Surpresa: os miúdos  portam-se mal. E muito bem.
Esperavam talvez os paizinhos que os miúdos lessem Schopenhauer,  fizessem ioga e adoptassem gatinhos. Como não aconteceu, e muito bem, culpam os garotos.
Envelhecer bem é não nos  comportarmos como  garotos, mas deixar os garotos comportarem-se como garotos.


Mais decadência. Dou por mim a comprar bacalhau  fresco.  Como um velho elefante cujos molares estão gastos e  suportam mal as memórias do bacalhau autêntico  entre os dentes.
Bem, só desta vez.








segunda-feira, 17 de abril de 2017

Cenas da vida menor: o poder de quem decide


No outro dia foram divulgadas imagens de um homem  a afogar uma mulher. Pelo menos de um homem a mergulhar a cabeça de uma mulher num rio. Passados  dois dias soubemos que o homem foi detido e colocado em prisão preventiva.

Comparemos com o massacre de Barcelos. O autor confesso andava em liberdade  ( pena suspensa)  depois de ter espancado a filha  grávida e a sogra.  A mim parece-me que o homem tinha  escrito desastre na testa. A mais gente também pareceu, porque foi-lhe destinado um plano de recuperação. Tal plano nunca foi cumprido e o homem degolou as testemunhas do caso.

Imaginem que as imagens do homem a afogar a mulher, pelo menos a mergulhar-lhe  cabeça num rio, não tinham sido vistas por milhões de  espectadores. Acreditam que o juiz o remetia para  a cadeia? Eu não, porque existem dezenas de casos de homens que matam/espancam as mulheres enquanto aguardam em liberdade o julgamento por violência anterior. Neste o caso o juiz deve ter pensado  duas vezes...

Há uns anos cheguei a discutir com a Ana  o projecto de um livro sobre violência (já não me lembro exactamente dos detalhes) . Apertar com o poder de quem pode decidir vale mais do que mil campanhas de TV  disparatadas.

terça-feira, 11 de abril de 2017

Diário de um psicólogo (35)

Um velho ferroviário do Sporting, de que  gosto imenso, está cada vez mais velho e cada vez mais do Sporting. Mima-me, traz-me coisas da horta  e nunca se zanga quando abato os lagartos com  subtileza de talhante ( sim, o corte certo da carne é meio caminho para a felicidade). 
É de um mundo que já não existe. Não tem WhatsApp, email, airs bags no carrro ( que já não consegue guiar), créditos nem SportingTV.  Um fantasma bom  e  triste, que me mostra como as coisas que foram ainda são, já não podendo ser. 


Agora quando acordo a meio da noite vou à cozinha beber leite de soja e volto a dormir: a decadência sem lactose.






quinta-feira, 6 de abril de 2017

Diário de um psicólogo ( 34)

A única vez que se embebedou. Bebeu tudo o que havia. Foi no casamento do tipo que teve sexo com ela quando tinha entre 9 e 14 anos. Ligações familiares obrigatórias. Muitos anos mais tarde, perdeu um filho com 14 anos. Hoje tem dois, uma pequena empresa e uma distracção apaixonada: flores.
Faz sempre cara alegre ao mau tempo, passamos metade da consulta a rir.
Às vezes agradece-me a disponibilidade  e a atenção. Se  soubesse o bem que me faz  e  como compensa o tempo gasto  com idiotas pomposas que fazem um drama de uma unha partida...


 A ler e   reler detalhes da presença soviética no Afeganistão. A palha com que em Herat os primeiros insurgentes enchiam a barriga dos comunistas afegãos ( depois de os terem esventrado) dever ser a mesma que há na cabeça dos que  explicam, com os dedinhos em ponte, que o fanatismo na zona começou com a invasão do Iraque.




terça-feira, 4 de abril de 2017

Cenas da vida menor : a representação da violência ( 2)


Só numa das  histórias do livro é que  a violência é indirecta: Berta morre por engano, Bentudo queria matar  o marido da amante. Apesar de tudo, é a história em que  a violência é mais evidente. Todas as vítimas o são por engano. Na história, a amante de Bentudo nunca se pôde separar do marido.

O marido, o namorado, o companheiro, podendo escolher, não matam as mulheres. Podendo escolher, preferem que elas façam o que eles querem. O não-me deixes ou o  não-te-divorcies é um enunciado claro: se as coisas forem como eles querem, tudo se passa bem. Isto significa que a impotência é muito mais do que um assunto de erecção , mas também descobre outro mato.

Esse mato passa pela socialização da posse. Na primeira história,  a mais tradicional, o homem  remói, em bebedeiras  e em conversas de gajos, as histórias das gajas que se separam e andam agora aí frescas  e apetecíveis. Cada gaja de que os amigos falam é sua gaja, a sua ex-mulher. É ela que é comida por este e por aquele, é ele que é  o  pós-corno.

domingo, 2 de abril de 2017

Cenas da vida menor: a representação da violência ( 1)



Vivemos num país  bem melhor , em termos de direitos das mulheres, do que o dos nossos avós. Um argumento muito utilizado  é o de que  a violência sobre as mulheres tem apenas agora mais visibilidade.
Também vivemos num país  em que é agora crime maltratar  um gato ou um cachorro. Curiosamente, vivemos num país em que se pode maltratar  - espetando-lhe  ferros - um touro e até pedir dinheiro para assistir ao acto*. 
Não consta que  o facto de ser mais visível ( maior número de queixas e maior atenção mediática) a brutalidade sobre  cães gatos  atenue ou explique o facto  de touros  serem maltratados nas arenas.

Até porque muito do que ocorre  não é reportado ( veja-se este exemplo canadiano que não deve diferir muito do nosso) , o argumento da visibilidade mediática assume-se como néscio. 
O ponto essencial é o de como a violência sobre as mulheres nos pode dar uma representação da violência da transformação das relações de poder entre os sexos.


* sou um aficionado.