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sexta-feira, 30 de janeiro de 2015

O desespero delas: por que nós adiamos?

Ouço estas queixas muitas vezes. Ontem, na clínica,  ouvi-as da boca de uma mariposa (uma mulher que fez um trabalho espectacular e já não tem medo de confiar num tipo). Elas sabem. A lampada do exaustor está fundida  há três dias. O caixote das tuas  tralhas  da mudança está ao canto há dois anos. Estás há um mês para renovar o BI do garoto.
Elas nascem com um número de óvulos  pré-determinado, ovulam quase sempre no mesmo dia do mês, geram uma criança em nove meses. Elas vêm programadas para  a ordem  e para o controlo.
Nós  produzimos num mês espermazóides suficientes para fecundar todas as mulheres da UE  ( dados anteriores à entrada dos países bálticos)  mas a possibilidade de fecundarmos a quota feminina do   prédio é mínima. Vimos programados para lançar o caos.
Elas estão convencidas  de que se não existissem, a casa era uma república de estudantes. Têm razão.  Futebol total, livros e latas de cerveja  por todo o lado, colecção de rolos de papel higiénico no WC . Elas não entendem arte moderna. Perguntam de que serve guardar "A Bola" do mês  passado ou tubos de tinta de aeromodelismo do tempo em que os miúdo seram miúdos. É o anti-destino de Malraux, conceito alheio ao pragmatismo delas. No fundo, aturam-nos porque assim estava programado.

domingo, 25 de janeiro de 2015

A questão antissocial: velhos e adolescentes


Muitas mães trazem-me  meninos que se isolam, convivem pouco. E digo meninos dos 13 aos 23 anos. Muitos filhos  trazem à clínica ( vejo-os depois só neste aspecto)  pais que se isolam e convivem pouco ou nada. E digo pais de 70, 80 anos.
Fico sempre ambivalente. No caso da gente nova, excluindo sinais de depressão  grave ou burst psicótico, presto atenção especial ao tipo de isolamento. No caso de velhos, excluindo sinais de depressão grave, por vezes associada a luto, ou de demência, idem.
Não é crime não querer conviver, claro, e  também não tem de ser preocupante. No caso de gente nova, as redes sociais ou feitios mais reservados devem ser respeitados. A pressão para a homogeneização é enorme, sem dúvida, por isso é ainda mais crucial dar espaço à diversidade, afinal um factor positivo para a saúde  genética das populações.
No caso dos velhos a coisa é diferente. O anacoreta senior cava uma distância ao mundo que se funda muitas vezes no cansaço da imaginação. Já viu muito, ainda  que por vezes muito do mesmo, aprecia reinar sobre  o resto  da sua vida como um suzerano tímido. Deixá-lo.

segunda-feira, 19 de janeiro de 2015

Política de drogas

Quando publiquei na Bertrand e na  Quetzal fugi das poucas que que tive de fugir, sob qualquer forma,  como diabo da cruz ( o que me valeu reprimendas várias), mas este assunto é outra louça.
Entrevista minha à Helena Matos, do Observador.
( para ser acompanhada destes textos)

sábado, 17 de janeiro de 2015

Política de comunicação no casal

Não faço caso das terapias conjugais a menos que sejam para evitar assassínios ou  fogo posto. O conceito de tratar casais, portanto, casamentos ou relações, é exótico. Lembro-me sempre das pessoas que querem um cão e depois vão para uma escola de treino de cães em alegre binómio cinotécnico.
A comunicação no casal é um dos temas preferidos das terapias conjugais. É refrescante imaginar um casal  na cama, a tentar aplicar as técnicas aprendidas na terapia conjugal:  é  o ménage ubíquo.
Já na política de comunicação do casal às vezes meto a colher. Não necessita do ménage psicotécnico, pode ser avaliada apenas com um dos elementos. Por exemplo: Se ele não lhe passa cartão, por que não arranja outro? Ou: Se ela engordou e não liga nenhuma, por que  não desenvolve um fétiche com gordas? Ou, como disse  Paulo aos Coríntios ( 2 Co 3.6): a letra  mata, o espírito dá vida.

terça-feira, 13 de janeiro de 2015

Perspectivas


Quero morrer, só me apetece  morrer, mais  valia morrer, já tentei  matar-me. Ouço isto dezenas de vezes por mês e não me gasta a empatia, mas na volta conheço gente que põe as coisas em perspectiva. Já cá trouxe uma mulher que aos vinte e oito anos ficou sem o estômago, vive sozinha  numa aldeia serrana com uma pensão de invalidez  gorda como a Kate Moss,   e com quem trabalho à distância, no teclado, quando não aceita uma consulta pro bono.
Na semana passada, conheci uma lavradora de 70 e muitos. Em nova perdeu  três filhos de uma vez. O marido tinha comprado uma caçadeira e deixou-a encostada a um canto do logradouro, com uma caixa de cartuchos ao lado.  Um irmão da senhora, na altura ainda gaiato,   quis chumbos para  a fisga e abriu um par de cartuchos.  Feito o trabalho fumou um cigarro e atirou a beata sem olhar. Os miúdos moreram assados como leitões no meio da palha e da carqueja.  Passados uns anos,  outro filho meteu-se na droga, acabou preso no Linhó. Mais uma volta da ampulheta e a senhora  lerpou  duas mastectomias: radical à esquerda, parcial à direita. Finalmente, há cinco anos, o marido  sofreu um AVC, acamou em casa, sofreu outro e morreu no mês passado.
A lavradora quer viver, "quer tratamento  para a depressão".

quinta-feira, 8 de janeiro de 2015

Solidão


As combinações são imensas, mas o resultado é sempre o mesmo: chave à porta e ninguém.
P. tem 62 anos, engenheiro reformado, solteiro de gema. Passou por períodos difíceis do ponto de vista da saúde mental, recuperou uma boa parte da autonomia e agora tem pesadelos  com asilos. Sobretudo  interroga-se: por que não me casei, por que não tive filhos? A solidão dele é de chumbo, mas sabem uma coisa? De toda a gente  que tenho em terapia, é o que melhor lida com ela.
L. é economista, tem 40 anos e está desempregada. A esta situação transitória ( tem neste momento boas possibilidades em carteira) junta-se o deserto amoroso. E um deserto que arrasta o sol e os lacraus, porque remete para o seu ( pouco) amor-próprio ( os burocratas chamam-lhe auto.estima). É uma mulher com garra e vai dar a volta, mas não é para já.
O livro II dos Remédios inclui 84 conselhos, mas nenhum especificamente para a solidão. O que mais se aproxima é o 78, o remédio para o torpor animi, a lassidão/languidez. Petrarca pergunta  ao sofredor: Quem pode dormir no meio de tantos perigos e esperanças? A ideia é a do tempo perdido. A motivação não é bonita mas é  eficaz: despacha-te que ampulheta não pára. 
A solidão -  se não desejada, claro - bebe muito do torpor. Tanto o P. como a L. me falam disso com frequência. Não chego aos calcanhares  do meu caro cripto-estóico Petrarca, mas a linha de trabalho que sigo também passa por usar os medos e a frustraação ( dos desejos)  como muletas para o caminho.

sábado, 3 de janeiro de 2015

Janus


Até foi Numa Pompílio que acrescentou Janeiro ao calendário, embora  sete séculos  depois o velho Júlio César tenha consagrado Janus  como o começo do novo ano. Janus, deus das mudanças, das entradas, dos portões, enfim, um deus atarefado. A bebedeira romana pagã,  que simbolizava a desordem do mundo antes dos deuses, interessa pouco aqui. O osso é a esperança no novo ano. Na minha confraria estóica, um disparate. Antes de atirar as primeiras pedras, pousem o copo.
Não há nada de mal em ter esperança, claro.  Um tipo vai registar o totoloto e espera a sorte, mas o  que os desesperados nos ensinam  é que a esperança é um acidente . Primo Levi, em entrevista  a Germaine Greer ( The Literary Review , Nov1985): Cada sobrevivente representa  uma excepção, um milagre, um ser com um destino particular.
Já celebrar, eufórico, um tempo que ainda não aconteceu, mesmo com a ajuda das próteses  hodiernas ( champanhe, passas, vestidos de gala) é um insulto aos deuses. Vivem bem com isso, eu sei, mas o pior é outra coisa: contam com a excepção, julgam garantir o milagre.