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sexta-feira, 28 de junho de 2013

Da cólera



Depois  da Baía dos Porcos, Kennedy deu ordens expressas : Não quero esse tipo ao pé de mim. O tipo era o comandante-chefe da Força Aérea e  tinha garantido o sucesso da coisa. O fracasso é assim : um tipo que queremos  longe de nós, um tipo que nos prometeu tudo ou não nos deu nada, mas  falemos da cólera.
Petrarca, de novo: os motivos encontram-se sempre, as ofensas inventam-se. A  cólera alimenta-se de qualquer migalha, é  a célebre teoria da gota de água. Comparo a contenção da cólera à contenção do desejo, porque são situações  em que o tempo joga a nosso favor. Na cólera, pode salvar-nos  a vida ( e a dos outros) , no amor pode garantir-nos um prazer inesquecível.

quarta-feira, 26 de junho de 2013



L, 28 anos, casada, sem filhos, rema contra  a corrente. Ainda bem que foge à neoplasia nacional e os salmões selvagens  são bichos de respeito. Tem um emprego mas não está satisfeita. É leitora do DC e, quando ler isto, vai recordar-se da nossa última conversa. O caso dela é sobre expectativas: são boas ou más para a saúde?
No caso dela, as expectativas afectam o  processo de decisão. Isto porque L. espera muito de uma vida profissional diferente. Noutras vidas é de um divórcio que se espera o renascimento, noutras ainda é numa mudança de casa que depositamos a reviravolta.
Quando se vai caçar com calibres médios ou grandes, o primeiro dia é reservado para o zeroing. Trata-se de adaptar a arma, mesmo que já velha  conhecida, ao momento que se avizinha ( viagens, alterações de temperatura e humidade etc, tudo pode descalibrar a coisa). Começa-se a 25 jardas e depois passa-se a 100 jardas. É um bom método.
Com as expectativas é a mesma coisa. Temos um alvo, mas, entre a decisão e a execução, muita coisa pode acontecer, até o previsto, pelo que as expectativas devem ser ajustadas gradualmente.
Esperar muito de uma mudança arriscada e corajosa retira-nos  a concentração e a energia para  levá-la a cabo e  conduz-nos   a exageros e a uma mira desafinada. Até conhecemos governos que  erram assim, não é?

segunda-feira, 24 de junho de 2013

O factor Sísifo




Não vou entrar na discussão sobre a raíz neurótica-frustrada ou treinada-aprendida  dos comportamentos. Interessa-me dar uma pequena ajuda a quem precisa de alterar a forma como está a conduzir a sua vida num determinado aspecto. 
Uma boa base é perceber o que a pessoa define como factor Sísifo, ou seja, o que a pessoa entende que está a  ser um desperdício de tempo e de esforço. Isto parece evidente, mas muita gente crê que não existe relação entre o ganho e a energia despendida para o efeito.
O amor é um desses territórios. Ele não quer, mas ela insiste, rebaixa-se, cede em tudo. A crença no outro, ou na nossa superior capacidade de o moldar, obnubila o tremendo gasto de energia e o rombo que toda  a situação provoca no nosso amor-próprio. 
O desgaste que a crise provoca é outra montanha para rolar pedra. A resposta habitual é  a intensificação dos vazadouros: irritabilidade, bebida, tabaco, isolamento.Como é natural, a resposta só vai aumentar o  peso da pedra que temos de rolar montanha acima.
Sílio Itálico, tido a certa altura como  sucessor de Virgílio,  mereceu de Plínio o Novo o seguinte comentário ( sobre  o Punica): maiore cura  quam ingenio. É isto - mais transpiração do que inspiração - , numa tradução libertina, que acontece quando   ficamos cegos ao esforço inútil que dispendemos em resposta a uma necessidade não satisfeita.
O que há  a fazer é, primeiro, uma confrontação honesta com a nossa cegueira. Somos nós que nos estamos a tramar, ainda que este  seja  um  mundo de carrascos. Depois, aplicar o esforço sem sentido nas coisas que nos podem salvar. É que, ao contrário de Sísifo, não fomos castigados pelos deuses mas pelos homens, pelo que nada existe que não possa ser feito ou suportado  de outra forma.
Se não acreditam em mim, leiam Primo Levi.


domingo, 23 de junho de 2013

Dor constitucional



Petrarca considerava que  a dor, física ou emocional,  só se tornava impossível de suportar  devido à fraqueza da alma. A virtude :   suportar   a dor nunca se  alcança por sorte, mas pela  persistência. Ao contrário dos epicuristas, Petrarca pretende combater apenas  a dor, diminuí-la,   não torná-la agradável. Socorre-se muitas vezes de exemplos de homens ( e deuses...) que o conseguiram, para estabelecer como universal e ao alcance  de qualquer um conseguir vencer algumas batalhas.É aqui  que  entramos na arena.
Quando tenho alguém em sofrimento a quem conto histórias de doentes que padecem de males  piores, ouço  o habitual "Com  o  mal dos outros posso eu bem". Se der exemplos  de pessoas que suportaram  a dor.  o que ouço é um pouco o  que a Dor diz à Razão no manual de Petrarca:  " Não somos todos iguais". Nestes dias em que o sofrimento é quase  igualitário, o que mudou?
Posso estar enganado, mas noto forças em gente que tudo tinha para desistir, mas também noto um bicho diferente  acoitado no matagal. É como se algumas pessoas, trespassadas pelos factores ambientais, se estejam a deixar ir.  É como se a dor  passasse a ser constitucional.
 Não era bem isto que o amante de Laura pretendia.

sábado, 22 de junho de 2013

Abertura no Depressão Colectiva

Será disponibilizado um endereço  de e-mail para que me possam escrever com privacidade, mas também tenho pensado noutra secção, embora  não tenha ainda conseguido resolver uma dificuldade.
A ideia é   abrir um dia de consulta social a um preço de custo : 25 euros. Preço de custo porque apenas cobre  o custo do espaço, secretaria, deslocação etc. O objectivo é proporcionar ajuda a quem não tem meios nesta altura de crise.
A dificuldade reside apenas nisto: como explico às  pessoas que tenho, ou venha a ter,  em terapia, ou em acompanhamento, que essa consulta, e esse  preço,  não é para elas?
Quando desatar o nó em Górdio, aviso.

sexta-feira, 21 de junho de 2013

Pais e filhos



Não há nada mais miserável do que viver através dos filhos, ou seja, querer que eles sejam o que não pudemos ser. Isto leva, em regra, a dois pregos: ou ficam com a personalidade de uma amiba ou ficam iguais a  nós. Pais assim são, também em regra, narcisistas magoados ou cavaleiros de armadura.
Já ouço o cântico: então há algum mal em passar os nossos  valores às crianças? Nenhum, se os tivermos, claro. Isso é diferente  de lhes dizer que esses  são os únicos valores, os malmequeres no deserto.
Outro coro: e qual é o mal de dar ao meu filho uma  vida melhor da que eu tive? Nenhum, só que essa vida má que viveste, não esqueças, é a tal que vai dar uma boa aos  petizes. Tens  a certeza de que era assim tão má?
Todos juntos: então o que é educar, caramba?
Cada um fala por si. Comigo,  é dar-lhes a liberdade de recusar o que precisam e ensiná-los  a fazer o que não querem. A partir daí, são livres.

quinta-feira, 20 de junho de 2013


Um dispositivo   mental para atenuar a angústia depressiva: planear. Isto obriga o sujeito a um duplo movimento, porque não só o faz contar  com o mundo exterior  às suas tristezas como o força a projectar-se no tempo. São dois cartuchos de calibre.

O sentir depressivo é ensimesmado. Alimenta-se do escrutíno sistemático  do que corre mal, das nossas fraquezas e azares. Por instinto, fechamo-nos, engolimo-nos, defendemo-nos do exterior. Planear uma acção obriga-nos a olhar para fora.
Por outro lado, o projectar-se no tempo ataca a porta principal da depressão: as expectativas negativas. Se planeamos fazer alguma coisa - ajudar alguém, um pequeno prazer etc - isso força-nos a rever o pessimismo temporal. Dir-me-ão: se é tão simples, por que é tão complicado?
O problema reside na natureza dos planos. Frequentemente elaboramos ou dizem-nos para elaborar planos  quinquenais, pesados, que nos parecem inatingíveis. O negócio é compartimentar o dia e traçar pequenas subida de colina, abrir picadas modestas.
Quando tens um acidente, partes as pernas e vais fazer fisioterapia, não começas a correr no primeiro dia, pois não?


terça-feira, 18 de junho de 2013

Alimentação antidepressiva

Comida antidepressiva? Parece que com Omega 3. Salmão? Não me cheira. Atum fresco e sardinha? Melhor. Ainda melhor: o prazer em cozinhar. Neurotransmissores ( serotonina, oxitocina, dopamina  e outros) em alta.
Antecipar o que vamos  cozinhar. Logo aí  a depressão lerpa uma lampana:  plano, prazer, esforço. Depois,  recuperar técnicas e modos já utilizados. Outra lampana:  vais atrás, à tua vida,  ela afinal tem coisas boas. Com sorte, recordas  mesas e gargalhadas. Nesta altura a depressão  parece o Cardozo  diante  do central. Qualquer central.
A crise assusta?  Que nada meu irmão. Pão de centeio ( o alentejano  de lei é raro) , azeitonas ( até das sapateiras, por Maomé), poejos, oregãos frescos da varanda e azeite. Ferve a água, derrete o pão com o oiro verde,  cheira-lhes as ervas. Tens duas moedas no bolso? Vai buscar um queijinho do Cano ( Sousel) e apresenta-lhe um copo de tinto ( pode ser o  bag -in-box  Pingo Doce da Maria Donzíla  Capeto, grande mulher...). Para sobremesa, por que não carapau pequeno? Três grãos de sal por cabeçudo, não os laves e  frita-os em azeite.
Come sozinho. Afinal a depressão era tua.

Insónias racionais



O sono reforça  a memória emocional. Se a literatura  vem a ser como um sonho que cada um de nós dirige ( Borges), o sono é o papel. Nestes dias de cabeça alveolar ( como a dos elefantes), o que nos impede de escrever? A crise, pois claro.
O estudo da drª Payne ( publicou outro, mais tarde, aperfeiçoçando a hipótese) faz pensar. Se dormirmos mais, preocupamo-nos mais . A alternativa é estapafúrdia: se não dormires desligas-te do que  mais te afecta ( a tua crise, a grande crise). Pois, mas se não dormires, morres.
Durmamos então e preocupemo-nos depois.

sábado, 15 de junho de 2013

Da desistência



Camus, em A Queda:

Oui, nous avons perdu la lumière, les matins, la sainte innocence de celui qui se pardonne à lui-même.

Um participante,  aqui do DC, no último post:  Quando lhe entra um cobarde pelo consultório, o que lhe diz? A frase de Jean-Baptiste Clamence, o sorumbático interlocutor entre nós e Camus, é a que melhor me serve. Ele há muitas razões para sermos cobardes, no sentido que o autor da interpelação lhe deu ( não querer lutar). Seria um enorme erro julgar a pessoa por esse momento.
Recordo um episódio  no meu gabinete. Fim de tarde, invernoso e chuvoso. há uns anos. Ela tem quarentas e  um passado psiquiátrico mais longo do que a Grande  Muralha.  Vem de longe, já sem esperança. É bipolar  de lei, certificada. Estou farta. Desisto.  Sabe o que é sair  de manhã de carro e já nem conseguir levar os meus filhos à escola? Trocámos palavras num registo invertido. Ela vinha dizer que já não queria dizer mais nada. Foi condescendente com as minhas tentativas, mesmo bondosa. Não me incomodou a minha impotência. Há muito, e nem sempre por boas razões,  que  a curei. Umas semanas mais tarde soube que se tinha suicidado.  Já sabia.
Os maus não precisam de nada ( Crisipo, mais um da tribo) . Que estrada fazes quando já não precisas de ir para lado nenhum? Não é de cobardia que se fala aqui, é de um caminho que te afasta de tudo o que precisas.
O trabalho é tentar atalhos. Querer ter fome, proteger alguém, até imaginar uma necessidade. Quando já não existem atalhos,  o terapeuta é um espectro que aparece ao espectro.

quinta-feira, 13 de junho de 2013

Da Sorte


Começa  a haver  retorno dos participantes ( aqui não há leitores)  no Depressão Colectiva. Eu lanço, eles relançam, eu lanço outra vez. Diz um/uma partcipante no último post:

"Viver um dia de cada vez, retirar-lhe todos os sucos, e não pensar no amanhã. É o Santo Graal. Basta disciplina ou vai-se lá pelo cansaço? Nada me interessa mais, a forma como se relacionam tempo e sofrimento".

Tempo e sofrimento. Também é o meu osso, mas hoje só um relance. Por casualidade, a minha tese de mestrado, nos longínquos anos 90, foi sobre a temporalidade e desde  aí  fiquei sempre  ligado ao assunto. Mal sabia que a vida me ia obrigar a regressar a ele tantas vezes ( a morte de um filho com ano e meio), mas vamos à interpelação.

Peguemos  num dos maiores  ( Petrarca) : Queixas-te da Sorte mas ela  não te roubou nada, apenas tomou o que era seu.  Em tempos de  sofrimento  só temos  olhos para o que perdemos, raramente para o que já recebemos. É uma disposição psicológica  natural, mas pode ser reinvertida.
Não é pelo cansaço nem pela disciplina ( embora ela seja importante), é pela posição que assumimos diante do mundo. Se nos convencemos que estamos  cá para ser felizes, tramamo-nos. Se compreendermos  que estamos  cá para lutar, rua a  rua, porta a porta, todo os dias, pela sobrevivência, valorizamos tudo.
Não há segredos nem truques. Há a orientação do olhar para o que desvalorizamos, ora porque achamos  que é pouco, ora porque entendemos que nos é devido e permanente. Não é: amanhã a Sorte ataca outra vez.


terça-feira, 11 de junho de 2013

Da resistência




" Eduarda", no post anterior:

"Tenho 32 anos e estou desempregada desde Novembro do ano passado. Neste momento, ainda posso dizer que o meu maior problema não é de origem financeira (as contas continuam equilibradas). No entanto, estando sem emprego há tantos meses e pela primeira vez na vida, convivo diariamente com a esperança maníaca e o realismo depressivo. Num só dia posso fazer várias viagens entre primeiro e o segundo.

É impossível, nesta situação, não se esperar nada do dia de amanhã. Espero, espero muito. E não me limito só a esperar: voltei à universidade, candidato-me a variadíssimos empregos. E vou lidando calmamente com a esperança e o realismo". 


A frase chave está bem à vista: " É impossível, nesta situação, não se esperar nada do dia de amanhã". Uma correcção antes de responder: a esperança é por vezes maníaca , não sempre, e isso não é necessariamente negativo. O lado maníaco pode ajudar-nos  a ver perspectivas diferentes,  a experimentar coisas que em princípio não experimentaríamos, a ter empatia por pessoas que precisam de nós ( por ex., um milionário decide dar um milhão de euros a uma instituição  de solidariedade). O osso é, no entanto, o ser impossível não esperar nada em certas situações  aflitivas.
A minha proposta é que a esperança distrai-nos da resistência. É com  a fadiga e o perigo que abatemos  as bestas ferozes ( um da seita, Séneca), ou seja , se a situação é, de facto, gelo fino, a esperança é secundária  à resistência. Todas as forças em cada dia. E foi o que a Eduarda fez: voltou  a estudar, persegue empregos, enrijece todos os dias.

segunda-feira, 10 de junho de 2013

Não esperes nada do dia de amanhã





As coisas estão sempre a mudar na saúde mental. Tenho no meu arquivo um relatório  escrito pelo meu pai, nos anos   50, a explicar ao tribunal que a epilepsia não é um desvio da conduta, nem sequer uma condição psiquiátrica. Tenho também muitas actas de congressos psiquiátricos  dos anos  60, de várias partes do mundo, onde se estabelece que  a homossexualidade é uma doença mental. Isto podia levar-nos para a diferença entre  um conservador liberal e um tradicionalista ou para o velho debate sobre o poder  político e o diagnóstico, mas não é aqui o espaço. Interessa-me outro nevoeiro. Já vimos, em posts anteriores, que a depressão  não é sempre incapacitante. Cruzemos isto com um dos lados da perspectiva estóica: não esperes nada do dia de amanhã.
No gabinete de um psicólogo ou de um psiquiatra o aforisma lerpa logo com " desmotivação", desespero" etc.  O que o antecede, na  ode  de Horácio, se o psi a conhecer, ainda reforça a sentença: despede-te do dia que passou.  A esperança pode ser maníaca ( e é muitas vezes) , o realismo depressivo pode conduzir-nos a outro caminho do bosque.
Não esperar nada do dia de amanhã ( para os estóicos cada dia é um ciclo fechado e independente) pode significar extrair  o máximo do dia de hoje. No meu caso, hoje, escrever, fazer pesos  com o meu filho, jantar uma morcela do Américo preparando uns ovos à florentina alternativos para a minha leopardita  mais nova.
 Amanhã?  Sei lá. Um aneurisma hemorrágico  durante a noite ou outro dia de trabalho. Tanto faz.


domingo, 9 de junho de 2013

Messias


Um resumo ( tradução) de dois artigos sobre  Viktor Orban e um problema sempre  actual: pode o líder messiânico aspirar a ser ditador? A pergunta  encontra outra:  há uma psicologia política  específica para essa aspiração?
Os autores descrevem um duplo método: isolar  as pessoas das fontes de ansiedade e dividir o povo. A criação de uma  realidade insulada do resto do mundo  já foi experimentada  vezes sem conta. Parte da construção de um perigo exterior ( ou do seu exagero)  para criar a necessidade de identificação absoluta com o líder messiânico. A divisão da sociedade visa estabelecer linhas de passe para ansiedade resultante da tensão: há forças de bloqueio entre nós.
Muita atenção para um aspecto que os autores referem: um líder tem sempre  de compreender as aspirações das pessoas. O que é que elas querem?
Sem entrar em teorias complicadas, isto faz algum sentido. Estamos programados para aceitar quem preenche as nossas necessidades. Faz parte do nosso processo de socialização, primeiro, maternal e, depois, social. O processo político, sobretudo se animado pelo fantasma de um inimigo exterior, agudiza essa necessidade. E, como se sabe, a ocasião faz o ladrão.

terça-feira, 4 de junho de 2013

Da raiva passiva






É um sentimento ligado à rejeição. Transposto para o colectivo, podemos perceber o cuidado com que os manipuladores políticos tratam a comunicação de medidas que façam com que as pessoas se sintam rejeitadas.  Um dos últimos estudos nas personalidades borderline confirma o potencial explosivo da rejeição: funciona como um gatilho. A questão está em saber se as personalidades ajustadas conseguem digerir melhor a rejeição em situações anormais.
A rejeição amorosa, por exemplo, não existe na vida colectiva. Tentemos   substituí-la pelo abandono. Os líderes e os strata dirigentes aparecem como desinteressados do destino dos que os elegeram. É possível que o sentimento de rejeição despolete raiva, mas de uma  forma pouco evidente. Gramsci usava o termo revolução passiva ( nas Notas sobre  a História da Itália) : uma  transformação molecular que ocorre   sob a superfície da sociedade.
Continuando o exercício perigoso, agora regressando ao indivíduo, será um pouco como a mulher,   que, sob o desprezo do marido, vai começando a ler outros livros,  a conhecer pessoas diferentes e  a desejar coisas que nunca tinha desejado. Regressando ao colectivo, a revolução passiva seria a resposta de uma sociedade ajustada à rejeição a que é votada pelos seus governantes.
Eu não desprezaria a designação "passiva", porque,  nisto como nos cães, os calados são os piores.

domingo, 2 de junho de 2013

Antes da sopa, molha-se a boca

Uma vez fui fazer uma pequena palestra a uma  sociedade de advogados,  a convite do Vasco Lobo Xavier. O tema era a mentira: como sabemos  se o outro mente? Na consulta de triagem ( na psicoterapia  a música é outra) não se trata de mentira  judicial, claro, mas da ocultação de um facto que pode ser importante paras as decisões terapêuticas. Por exemplo, quando sou chamado a avaliar  um possível absuso sexual ou quando existe informação lateral sobre algo que o sujeito terá feito e em cuja negação ele se escuda  para refutar tratamento.
Esqueçam os mitos urbanos; o olhar de lado ou  para  a parte  esquerda da testa, o corar etc. É a organização da linguagem que nos diz tudo. A pessoa tem uma história que nos quer contar, porque essa história, acredita ela, a defende da agressão exterior.
Uma mulher da zona Mau-Mau, casada, que ajudo há muito tempo, tem feito uns serviços sexuais para compor o orçamento. Tenho a obrigação de a ouvir por telefone todas as semanas, porque as consultas e as viagens são caras ( às vezes não lhe cobro nada, mas não é suficiente)  e assim fomos criando um laço inter-beirão. Pergunto-lhe muitas vezes se o marido não desconfia da prática, ou, pelo menos, do alívio financeiro. Até agora, não: Antes da sopa, molha-se boca.