email para contactos:
depressaocolectiva@gmail.com

domingo, 30 de novembro de 2014

Quando somos nós o assunto


Perguntam-me muitas vezes: Como lida o psicoterapeuta com problemas iguais aos das pessoas que nele confiam? Casa de ferreiro, espeto de pau? É óbvio que cada profissional fala por si, por isso a resposta é individual.
A minha linha de trabalho é sempre a autonomia do sujeito. Seja num luto, numa separação, numa questão laboral, no amor etc. A saúde mental, do meu ponto de vista, exige  capacidade de nos aturarmos. A partir daí muita coisa se pode construir.
Somos animais contraditórios. O leão não hesita sobre  a zebra nem o atum sobre o cardume de sardinhas. A ambivalência - onde cabe o remorso, a culpa e o sentido de justiça - é a base da autonomia: é o tiro de partida para a compreensão  de que, em última análise, temos sempre uma  opção. Os outros, a infância e os males do mundo são inocentes na nossa solidão.
Na minha vida, repleta de asneiras, o que a maturidade me trouxe foi a autonomia. Escolho, decido e sinto em função da liberdade  de poder optar por outras escolhas. Assim, só os  deuses e o destino são meus senhores.

quarta-feira, 26 de novembro de 2014

No fim do amor


É incrível, com o passar dos anos, a diversidade de modelos amorosos que um psicólogo observa. Paixões prometedoras que terminam  enquanto um  pardal vira a cabeça, amores longos interrompidos pela chegada de um par de pernas sem cruise control, enfim, uma catrefa de combinações. A pergunta, sobretudo delas, que as ouço muito mais, é sempre a mesma: Como pôde acabar ? Gosto de  fazer outra: como pôde começar?
Não é assim tão disparatada. Se um amor pode  acabar estupidamente, sem razão nenhuma etc, por que carga de água não pode também ter começado  estupidamente e sem razão  nenhuma?
Existem várias explicações. Ela julga poder modificá-lo, ela fecha os olhos a coisas evidentes desde o início, ela julga-o garantido ( isto é mais eles, mas enfim...), ele é casado e com filhos, ela está sozinha há demasiado tempo, ela é insegura  e o indivíduo enche-lhe os ouvidos ( os verdadeiros orgãos sexuais das mulheres) etc.


sábado, 22 de novembro de 2014

Ansiedade, de novo

Tanta gente, tantas conversas, tantos ansiolíticos. Os anos  passam e sei sempre mais do que sabia no ano anterior. Mal fora.
Tendemos sempre a enfrentá-la no seu terreno, o que é um erro. E o terreno é o da crise  de ansiedade com a sua  parafernália de sintomas, nem sempre com o aparato da crise de  pânico. A mellhor estratégia é procurar um terreno mais favorável.
É a própria estrutura social da pessoa que deve ser batida. O que fazes, como vives, quem amas, quem evitas, o que bebes, onde dormes, quanto ganhas. Faz-se uma machan ( ou mutala) em cima de acácia ou figueira -da -Índia e observa-se tudo. A ansiedade caça lá em baixo, é preciso saber do que vive.
Podem dizer-me: é muito difícil mudar a estrutura social da pessoa. É sim senhor, é  quase impossível, mas não precisamos de tanto. Por vezes um grande ajuste é suficiente. Uma relação amorosa que já morreu sem  minguém a avisar, uma  sogra com a qual já não há bandeira branca que  valha, uma  mania ( de controlar  o filho, de fumar demasiado  haxixe etc ) que tem de ser jugulada. E por aí em diante.
Nesta altura estão prontos a gozar comigo: se é assim tão simples por que existem tantos ansiosos? Porque é mais fácil deixar de fumar depois de um susto ou emigrar quando perdemos o emprego do que aceitarmos  que a nossa vida está errada, que a culpa não é dos outros, que mudar não é apenas um slogan político.

quinta-feira, 20 de novembro de 2014

O caminho de cada um


Esquece o gato que fugiu, a infância neurótica, os complexos das mamas caídas. Queres uma depressão D.O.P.?  Então :
a) Tens uma doença incurável e perigosa (já fizeste  o primeiro trasplante hepático), mas que te permite trabalhar,  ser mãe, ir ao cinema. O teu marido dorme no sofá mental, estás, digamos, um nadinha diferente.
b) O teu companheiro ( namorado com quem vivias, enfim....) morreu num acidente de automóvel, os pais dele  lixam-te  a cabeça porque são herdeiros de metade da casa que compraram, o teu trabalho é uma porcaria mas não há alternativas, a crise dispensa as tuas  ( boas) habilitações.

Uma espada de Dâmocles sobre  a cabeça da primeira, uma estrada esburacada para lado nenhum sob  as botas da  segunda.
Da próxima vez que te sentires deprimido porque fizeste quarenta anos ou porque o teu filho teve má nota  a matemática, passa por aqui.

terça-feira, 18 de novembro de 2014

Desaprender

O  terrível O'Neill ( Uma coisa em forma de assim, 1985) explica:

"Há uma altura em que, depois de se saber tudo, tem de se desaprender. Sucede assim com o escrever. Com o escrever do escritor, entenda-se. Eu, provavelmente poeta, estou a aprender a... desaprender. E para quê e como se desaprende? Para deixar de ronronar, para que o leitor, quando o nosso produto lhe chega às mãos, não exclame, satisfeito ou enfastiado: «- Cá está ele!». 

Isto aplica-se a outros matos. Tratarmo-nos é, muitas vezes, desaprender.  Desaprender de viver com a mulher/marido e os filhos, desaprender de ter o pai vivo, desaprender de conseguir correr, desaprender de abraçar um filho.  Etc.
Reconstruir a cidade bombardeada é outra forma de desaprender: de viver.




domingo, 16 de novembro de 2014

A violência da interpretação


O título é retirado de um pequeno livro, "La violence de la interpretation", de Piera Aulagnier ( uma fraude ambulante), que dorme há 25 anos  na  minha pequena biblioteca. A tira é daqui: https://www.facebook.com/porliniers?fref=ts. Aproveito o pictograma de Aulagnier, expurgado do mambo-jambo psicanalítico, para sublinhar  a natureza da interpretação em psicoterapia.
O terapeuta pode funcionar como o porte-parole ( porta-voz), aquele que liga o nome à coisa. Por exemplo, no outro dia acabei por dizer a uma mulher que  tinha de sair do estado de auto-comiseração em que se enredara.  Zangou-se um bocadito , mas depois  assimilou. Ou seja, muitas vezes a nossa função é a de representar as partes doentes, dar-lhes voz.
 

sexta-feira, 14 de novembro de 2014

Medeiazinhas

Parece que os homens também são abusados pelas mulheres: intimate terrorism. Sim, sempre houve chatas, mas esta psicologização da chatice não me convence nada.
Já são muitos anos disto ( 25) e mal de mim se não tivesse uma ou outra ideia sobre o que uma mulher pode fazer a um homem no departamento intímo ( do terrorist, bien compris...). Medeia é a chefe de fila delas. Quem quiser que leia as excelentes traduções, quase todas publicadas na  INCM, da escola de Coimbra, que há muitos anos trago aos blogues ( Maria Helena Rocha Pereira   José Ferreira da Silva  etc). Quem souber inglês e não tiver pachorra tem  aqui um resumo.
Há quem esteja do lado de Medeia ( mata os filhos para os coríntios não os matarem) , há quem torça por Jasão, o marido infiel e malandro. Como quase sempre, nas tragédias gregas, o conflito entre a lei e o sangue, mas Medeia tem o que as chatas não têm: um lugar na  luta real entre o amor e o ódio.
Hoje por hoje, a maioria das chatas ( mal almadas, inseguras, ciumentas, histéricas) nunca conseguiriam sentir nada tão forte. Os homens ficam, assim, a salvo.

quarta-feira, 12 de novembro de 2014

Boa pergunta


Pela enésima vez: Como é possível ele dizer-me num dia que me ama para sempre e no dia seguinte dizer que tem de pensar e depois acabar? No último mês foram mais duas  mulheres a querer saber.
A linguagem é muito sobrevalorizada. O Silva ama a mulher, não pode viver sem ela, por isso mata-a. O Mário-Henrique  Leiria ( Contos do gin tónico) também explica:

Na riqueza e na pobreza, no melhor e no pior, até que a morte vos separe.”

Perfeitamente.

Sempre cumpri o que assinei.

Portanto estrangulei-a e fui-me embora.

Dizer, não custa nada; não dizer, ainda menos.


sábado, 8 de novembro de 2014

Controlo/insegurança


É de importância decisiva para a autonomia do sujeito o temple deste par. É transversal ao desconforto, aparecendo em quadros obssesivos e fóbicos, mas também em sujeitos sem indicação clínica. Um excesso de controlo leva à insegurança - já aqui vimos e se quiserem ( re)leiam a Toca do Kafka - mas o inverso também  é verdade. E mais perigoso.
Um adulto inseguro tem muitas camisolas, mas há uma que veste sempre: procura mais o reconhecimento externo do que confia na autovaliação.  Esta sinalização permanente leva-o a uma monitorização invulgar de todas as reacções do ambiente e isto só pode ser feito através do controlo, imperfeito, mas cansativo e ineficaz.
Uma consequência comum  é, por exemplo, o sujeito acabar por fazer  mais para agradar aos outros do que aquilo que quer realmente fazer. E isto, como compreendem, é uma navalhada  no amor-próprio.

terça-feira, 4 de novembro de 2014

Divórcios, filhos


A diminuição do número de filhos, que começou nos anos 80 ( ao contrário do que dizem os aldrabões ), obrigou a uma actualização dos pressupostos parentais. Depois, a facilitação do divórcio ( agora menos  com a crise) criou uma rede de arranjos artificiosos. No meio, a lengalenga como a que  Goucha repetia, excitado, a um convidado no programa : É muito pior para as crianças um casamento de fachada dos pais". Isto porque o convidado disse uma coisa simples:" Não é à primeira crise que os pais se devem separar".
 O convidado dizia uma verdade óbvia, mas crença de que a vida familiar  deve ser um mix de Ídolos com Rei Leão gera reacções idiotas. O trabalho académico e político do lóbi gay, a partir dos EUA, nos anos 60, ajudou gerações a  acreditar na crença. Em parte compreende-se: a família tradicional execrava a homossexualidade. O problema é que a família era apenas o reflexo das categorias culturais vigentes.
Como psicólogo, tenho encontrado consequências muito piores para  as crianças  em casais que se divorciaram do que nos tais casamentos de fachada. E não é porque os papás se separaram: é porque usam as crianças para as noites ( e dias) das facas longas da vingança e do ressentimento pós-divórcio. Ou seja, os miúdos ficam com o pior do casamento de fachada num divórcio de corneta.

domingo, 2 de novembro de 2014

Oásis depressivo ( suite)

O refúgio pode ser uma tumba. Exagero um nadinha, mas se pensarmos em alguém deprimido, o oasis deixa de ser o lugar  aonde se tem prazer em chegar para ser  um covil  de onde não se tem pressa de sair.
Tenho em terapia algumas pessoas nesta fase. Por exemplo,  uma mulher de 40 e tal, com uma doença grave, uma de trinta e pouco, desempregada,  e uma de vinte e muitos, desiludida com tudo ( e com ela própria). Em comum  todas  serem licenciadas - e  especialistas  -e terem uma má relação com o oásis, embora a de 40  tenha progredido bastante.
É curioso que quando estamos  em baixo o refúgio seja mal aproveitado. Sei muito bem que a inércia triste invade tudo, porque já lá estive, mas também sei que não podemos desperdiçar. Nesta fase, invectivo, literalmente, as pessoas: o oásis está do lado delas e não é tempo de desperdiçar aliados.
Se nem no lugar/espaço/tempo do oásis somos capazes de sentir paz, estamos perdidos.