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segunda-feira, 29 de setembro de 2014

Psicoterapia


O meu gabinete  não é nada disto. Tenho uma secretária preta entre a minha cadeira preta e a cadeira preta  da pessoa. Não tenho plantas nem bolinhos. O único artefacto é uma réplica de  desenhos a preto e branco  de pinguins e cães feitos pelo Picasso. Não é uma sala de amigos, é um gabinete de trabalho.
Para ver é preciso deixar de se ver, dizia o Cabeça de Dinamite a propósito dos psicólogos. Sobretudo, deixar de ver grande parte do mambo-jambo publicado nos últimos  120 anos.  Respeitar a pessoa é não lhe aplicar o que nos tentaram ensinar.
A minha batalha é a da automia do sujeito. Muitas formas de a alcançar, muitas formas de a falhar.



sábado, 27 de setembro de 2014

Política de saúde emocional ( 4)

Tenho vários e pesados volumes, herdados do meu pai,  que reúnem os melhores artigos de congressos mundias de psiquiatria nos anos 60 e 70. Estão arrumados numa pequena secção morta da minha biblioteca e por boa razão. Nesses volumes encontro vários artigos de psiquiatria de, à data, respeitadíssimos professores - portanto, formadores - que garantiam ser a homossexualidade uma doença. Nenhuma novidade, dirão, Não tanto assim.
O movimento  antipsiquiatria ocupou-se também do sexo. David Cooper tem direitos de autor . No seu manifesto antipsiquiátrico, já nos anos 80, Cooper incluia um pressuposto: o fim da repressão de qualquer forma de relacionamento sexual entre adultos. R.D. Laing, outro nome famoso do movimento, questionou, e bem,  a noção de normalidade: normal men have killed perhaps 100,000,000 of their fellow normal men in the last fifty years. Como é habitual nos fanáticos, Laing  não soube parar e escolheu a família como produtora  da esquizofrenia. A seita ( o   negativo da ala  delirante do Tea Party de hoje) adorou: as interacções sociais na  família são asfixiantes, intrusivas e perturbadoras do desenvolvimento da personalidade e da identidade pessoal.  A esquizofrenia  era, portanto,  normal com uma família destas.
Se a imposição biológica e o desleixo cultural ( gays doentes e assassinos normais) serviam um mundo agarrado às velhas concepções do poder  sobre saúde mental, o seu reflexo, o movimento antipsiquatria,  serviu um mundo histérico diante da imperfeição humana.

quarta-feira, 24 de setembro de 2014

Política de saúde emocional (3)

Esta série, longa, será sobre a alteração do anátema: emocional em vez de mental.
Muita coisa mudou na expressão comportamental com a desagregação da família tradicional e depois com a inundação electrónica. Categorias clássicas foram susbtituídas: o papel do pai, a comunicação amorosa, a relação com a expressão material da felicidade ( o consumo),  a potência dos novos antidepressivos,  a organização adolescencial   etc.

Política de saúde emocional ( 2)

Política de saúde emocional ( 1)

segunda-feira, 22 de setembro de 2014

Queremos novos passados

Marie Bonaparte, financiadora do movimento psicanalítico, aluna de Freud, orfã de mãe com um mês  de idade : o nosso sentido da passagem do tempo tem origem no sentido da passagem da nossa própria vida. Quem diz que o passado é inalterável não sabe o que diz. 
O passado é feito de duas categorias: o acontecimento e a  percepção do acontecimento.  Esta é perfeitamente alterável. Um acontecimento ocorrido há vinte anos pode ser hoje sentido de forma tão diferente que passa a ser um acontecimento diferente. Uma zanga de  amigos, uma discussão com o pai, um amor perdido.
Do ponto de vista psicoterapêutico, este  passado sentido conta tanto como o outro. Talvez até mais: é o nosso passado.

quinta-feira, 18 de setembro de 2014

To be or to be


Grande verdade. Outro escritor desenvolveu a ideia, é um livro que aconselho sempre aos perplexos.
As decisões, sobretudo as grandes decisões, tomam-nos como um parasita que nos engole. Quanto mais irreversíveis parecem ( poucas o são) mais  nos colonizam.
A saúde mental depende muito do processo decisório, mas a lalangue psi dedica-lhe pouco espaço. Compreende-se: não é terreno para raciocínios tortuosos nem banha da cobra. 
No aconselhamento temos de conhecer muito bem o sujeito indeciso. Como um detective criminal, temos de saber a marca do desodorizante, a duração dos orgasmos, o IRS. Se nos pedem uma opinião, convém recordar a frase de Saramago. O sujeito  nunca mais será o mesmo.

terça-feira, 16 de setembro de 2014

Realismo depressivo, outra vez

They may be sadder but they are not wiser. Este artigo, saído da religião behaviourista ( no Islão psi,  os comportamentalistas são os sunitas, os psicanalistas são os xiitas), ataca o realismo depressivo. Devemos sempre dar a palavra  aos adversários, mas aquilo é o típico mambo-jambo.
Entendamo-nos. Fulano passa por um episódio brutal. Sobrevive. A patir daí sabe que a vida pode ser terrível. Fica depressivo? Fica. É realista? É. Onde está então a vantagem?
Ela reside nisto: fulano, passando a saber de ciência feita que a vida pode ser terrível passa a apreciá-la muito mais. Recusa o chicote, por isso não o merece. Ou como o louco do Masoch o pôs: a batalha do espírito com os sentidos é o evangelho do homem moderno.
 
 
 


sábado, 13 de setembro de 2014

Do ridículo

Comparo o cair das alturas do coração à queda que se dá de um garboso cavalo: quem nos vê cair pode ser que nos deplore, mas decerto não nos acha ridículos. Se é o grande resmungão que o diz, quem sou eu para contrariar?
Talvez exista uma acentuada diferença de género. As mulheres, em geral,  não precisam vingar a queda;  os homens tendem a matar  o cavalo com requintes de malvadez.

quinta-feira, 11 de setembro de 2014

Aço


Estava há bocado a explicar à C., que tenho em terapia há uns meses, que uma coisa é o problema melhorar, outra é nós melhorarmos. Confusos? Ora vejamos:
Defendo que há coisas que nos acontecem que matam partes de nós. Podem ser genes, episódios, circunstâncias avulsas, o ágape é variado. Ficamos com uma parte doente, aleijada. Ela não tem de melhorar. Uma perda não melhora,  um défice qualquer  pode não melhorar.  O que pode, e deve, acontecer é aprendermos a viver  com essa parte , apesar dessa parte. E aí melhoramos, sim, porque a aritmética não engana: se vives com menos vales mais.
No fundo, é ser humano.  Os nazis fizeram o percurso contrário. O programa T-4  eliminou cerca de 90.000 doentes mentais, ( incluindo 6.000 crianças)  com a ajuda entusiástica da elite  médica e universitária alemã, como  Werner Catel e  Ernst Wenzler. O programa  foi centralizado a partir de uma casa em Tiergartenstrasse nº4, no centro de Berlim ( estive lá perto mas na altura  não sabia e por isso também não sei se está assinalado), daí ter ficado assim conhecido.

terça-feira, 9 de setembro de 2014

Ansiedade, de novo

Somos capazes de mentir descaradamente, somos capazes de nos masturbar, somos  capazes de torcer pelo  Sporting contra o FCP, mas não somos  capazes de controlar  uma crise de ansiedade e o seu valete, o ataque de pânico. Está por fazer um bom estudo filosófico sobre a relação entre as alterações culturais dos últimos 50 anos ( cultura ado, diminuição da natalidade) e dos últimos  150 (materialização da felicidade e síndroma madame Bovary) , que possa  explicar esta incapacidade crescente.
Não, não falo das tretas do Lipovetsky ( prefiro um único e... famoso verso do  Larkin) e da Himmelfarb. O velho Freud andou lá perto, porque ganhou a vida na alta sociedade vienense e por isso soube de coisas meio século antes.
O primeiro antidepressivo do grupo dos inibidores da monoamina oxidase, a iproniazida , foi originalmente  desenvolvido contra a tuberculose. Foi abandonado por incidência hepática mas também porque os doentes ficavam muito, digamos, excitados. O fundo ansioso e fóbico da depressão existencial ( por oposição à endógena)  teve a sua primeira resposta com a iproniazida em meados dos anos 50. Bate certo: os achaques da freudiana sociedade vienense demoraram meio século a popularizar-se.

segunda-feira, 8 de setembro de 2014

Quem come, cala

Orgasmos melhoram comunicação pós-sexo, algum álcool também;  mau sexo cala-nos, mucho álcool também. Continuo a pensar que ele ensina mais do que estes estudos científicos  ( leiam, ou releiam,  a parte VI), mas aceitemos o desafio da oxitocina.
 Mesmo que cumpramos a receita do artigalho, sobra uma insidiosa questão ( que não preocupava Ovídio,  se forem à tal parte VI): comunicar o quê?



sexta-feira, 5 de setembro de 2014

Aproveitar


Insisti sempre, nos livros, nos blogues, no tempo da "Ler" , nesta tecla: desperdiçamos  imenso. Corrijo o tipo da badana do meu Amor e Ódio: esta vida não é uma longa história de sofrimento, antes de desperdício.
Recuso com naifas a treta do que só quando vemos o fim a aproximar é que resolvemos  dar valor à vida. Também recuso o desprezo pelo que há em nome do que virá. São   posições  esquizo-paranóides. Como se o mundo nos devesse alguma coisa.
Ser capaz de criançar a jogar à bola com um filho, fechar um livro antes de adormecer e pensar  na sorte que é ver, comer um pedaço de pão de lei a meio da manhã, seguindo o conselho de Epicuro ( coitado, se soubesse que o seu nome está agora associado a gastrossexuais...).
Aos que desperdiçam, faço minhas as palavras de um croata: recebemos  como recompensa aquilo que vos foi dado como castigo.

terça-feira, 2 de setembro de 2014

Ainda a colonização parental


Desenvolvendo um nadinha o que aqui se espraiou. Ainda que a associemos  à adolescência ou início da vida adulta, a força  da herança da colonização parental encontramo-la nas pessoas maduras, já pais e até avós.
Perdi a conta de maduros que atribuem à herança colonial familiar muitos dos seus problemas, incapacidades, revoltas interiores dilacerantes. Em muitos casos com boas razões para isso, mas não deixa de ser surpreendente a forma como essa atribuição passa um atestado de menoridade às suas vidas adultas. Vale isto para a herança colonial familiar como para as ondas de choque de episódios ditos traumatizantes.
Tento, sempre  que sou chamado a ajudar, bater neste ponto: o que somos em adultos é da nossa responsabilidade. Claro que existem casos pontuais de terrível e imorredoira herança, mas são poucos. Na maior parte das vezes apenas arranjamos uma muleta mental que arquiva as  nossas fraquezas no museu colonial.

segunda-feira, 1 de setembro de 2014

A perda e a criação

 Muito  antes de publicar  sobre a perda já predicava na clínica sobre o sistema que conheço bem demais. Mais do que o trabalho, a única coisa que podemos  opor  ao desastre é a criação. Vem isto a propósito  de uma pequena aposta que  fiz comigo: se aquela mulher ( Judite  de Sousa e só menciono factos  públicos) regressar ao trabalho em três meses, está salva. Ganhei a primeira  parte...
Comparo uma perda brutal a uma cidade bombardeada. Nos dias seguintes não há nada: água, luz, tempo, crianças a brincar. Aos poucos um homem começa  a vender umas batatas velhas, outro descobre um poço e começa  a puxar água, uma mulher  recolhe  dois orfãos etc.
A resposta proporcional, a única que podemos contrapor à destruição é  a criação. Mais nenhuma tem a mesma dignidade e força. Vemos assim que não basta o trabalho. Tem de haver  uma sobreposição ao  fatum e tem de passar pela criação de mais fatum. Pode ser  um novo projecto, um novo amigo, criar leitões, o que quiserem.
Sachsenhausen foi o primeiro campo de concentração  a usar o Arbeit macht frei ( o trabalho liberta) à entrada  ( Hoss copiou-o  depois para Auschwitz). Acertaram, as bestas, mas substituiria trabalho por criação.