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domingo, 29 de dezembro de 2013

Isolamento


É prima do desespero, tia da solidão, afilhada da depressão. Também é aluna da criação e professora do sossego. A sensação de isolamento é uma hiena, fisi.
Existe, no entanto, um mato onde esta fisi não deveria deambular. Mulheres, quase sempre ( uma excepção), queixando-se de se sentirem isoladas na relação. Tenho especial carinho por uma, trintona, afável, muito bem servida  no departamento estético. Está longe de casa, foi viver com o marido e as filhas para castelo estranho. Ele não lhe liga. Literalmente. Não só é um desperdício como a colocou na necessidade de procurar alternativas.
O isolamento faz-nos  sentir estrangeiros em casa ( experimentem fechar-se  no quarto durante dois  dias e até vistos  de residência vos pedem), imaginem numa relação. A nossa bela afável sente-se isolada da história que quis construir com o marido, sente-se imigrante ilegal com o amigo das redes sociais, esse lugar de trânsito para mercadorias avariadas ( roubando ao Soren).

quinta-feira, 26 de dezembro de 2013

Alternativas


Depois da cidade destruída, vestigiamos nos escombros, cumprimentamos os ratos, arranjamos  uns plásticos e pomos à venda umas batatas velhas que escaparam.
A esperança é também isto ( continuo a preferir  a minha definição : a bala sozinha no tambor do revólver). Ela, ainda jovem de quarentas, está, literalmente, entre este  lado  e o outro, mas continua a fazer tudo o que tem de fazer. Porquê?
Falamos muito da alternativa. Não há alternativa. Diante do perigo real e imediato, todas as adversativas levam com falta disciplinar. Continuar não é um caminho a escolher, é a propria escolha.
A destruição é também isto: ficarmos reduzidos a uma vereda estreita.

sexta-feira, 6 de dezembro de 2013

terça-feira, 3 de dezembro de 2013

A casa


Cormac MCarthy, em A estrada, mostra que a nossa casa depende  muito mais das pessoas  do que das paredes. O pai e o filho, o laço, faz de casa onde quer que eles se encontrem. Chegar a casa depois  do dia de cão vale  muito. E não vale nada  se não estiverem as pessoas que queremos.
Tenho gente em terapia que vive sozinha. Desde mulheres  jovens e independentes a senhoras de muita idade. A propósito, a senhora do outro dia, que mal consegue percorrer a extrema do quintal, retomou a tese de mestrado sobre  Francisco Bugalho, o pai de Cristovão Pavia, poeta que já trouxe muitas vezes aos blogues. Poeta esquecido. Sem casa.
Dizia então que essa gente que vive sozinha é admirável.  Faço sempre a mesma pergunta, sobre o momento  em que metem a chave à  porta. Suponho que gostam, sobretudo as mais novas ( as outras é outro mato). Um antropólogo francês, Marc Augé, que já esteve em Portugal, pintava a casa das cores da retórica familiar: o sítio onde não temos de nos justificar. Deve ser por isso que quando chego a casa passo pela mulher, pelos filhos, atravesso a sala e desaguo no terraço com  a minha boxer e uma bola.  Passados dez minutos estou pronto para o ( bom)  pow-wow familiar.
E os que, nestes dias de retórica ácida, chegam a uma  outra casa, com gente  que está com outra cara e nada têm para dizer, muito menos  para ouvir?  Está por fazer o levantamento das baixas no refúgio.

domingo, 1 de dezembro de 2013

Sem mãos

Um dos meus Mestres: querer sem motivo,  sofrer sempre, lutar sempre e assim sucessivamente até que o planeta se estilhace em pequenos  pedaços. É um programa completo.
A nossa saúde mental depende muito do querer sem motivo. É uma abertura genial. Recordo em particular um casal em que ambos, desde novos, tinham objectivos determinadíssimos. A meio caminho constato que boa parte desses objectivos (  a vida  a dois, o envelhecer  juntos etc)  falharam. Até aqui nada de especial, não fora a catadupa de consequências ( financeiras, acédia na familia, sobretudo com os filhos, negrumes avulsos).
A intenção permanente  do querer, a projecção  no futuro desse querer como se a felicidade fosse um impresso do IRS,  a ideia estapafúrdia e narcísica, porque impotente, de que o mundo existe para ser dominado. O fracasso, nestas condições,  tem um  sabor inesperado e, portanto, ainda mais doce.

quarta-feira, 27 de novembro de 2013

A trégua


Os casais em ruptura relembram as primeiras desavenças porque lhes é impossível recordar os primeiros beijos. A memória da relação é de elefante kali.
Esta operação é comum a outras faunas. No trabalho que te aborrece, nos filhos que fazem o seu caminho, etc. A ruptura obriga-nos a extrair  do passado tudo o que possa justificar o presente do abandono. É uma política  de proximidade, melhor  lembrada  pelo conselho de um dos maiores: one is not duchess/ a hundred yards from a carriage.
Fico sempre fascinado pelas partes desavindas que no espaço do tempo revivem as tais  desavenças originais e pecaminosas, mas continuam a dormir a centímetros um do outro. Ou que trocam presentes no Natal como se o outro presente pudesse ser cancelado.
O animal humano é o único capaz de matar o amor. Chama-lhe trégua.


domingo, 24 de novembro de 2013

Desespero

Na longa lista de Petrarca  não há uma categoria especificamente dedicada ao desespero. Julgava conhecer o manual de cor e eis  quando reparo que, numa das consultas,  o Mestre  responde a quem se queixa do ruído e dos modos dos  cães do vizinho. Explica ele : Quem aprende  a suportar os incómodos causados pelas pessoas  não temerá os provocados pelos cães. Estes serão sempre menos  numerosos, menos ferozes e menos enraivecidos do que aquelas.
O desespero é das emoções mais difíceis  de gerir numa terapia ou em aconselhamento. A pessoa está pouco receptiva à racionalização, está defensiva, é, digamos, um gato eriçado. Diante de um cão. Seja pela falta de dinheiro ( Petrarca  tem  a teoria da Troika sobre a pobreza: deixa-a entrar e serás virtuoso), pelo abandono amoroso, pela doença ou pelo luto.
Costumo, depois dos preliminares ( empatia, escuta, fuzilamento de lugares comuns), ir por um caminho que  aprendi comigo e com outros desperados: põe ao lado do  que o desespero te tirou,  tudo o que ele ainda te pode  tirar.

quarta-feira, 20 de novembro de 2013

A que espécie pertences?


Um estudo cheinho de humor. E tu, procrastinas?
Quando mudei de casa, há quase três anos,  mantive dois caixotes de tralhas num canto da biblioteca. A minha mulher desesperava. No outro dia esvaziei um. Disse-lhe que os Hopi, que vivem no tempo polissíncrono,  uma vez demoraram cinco anos até pôr em tribunal uma petrolífera que feriu a reserva índia. Respondeu-me que estimava muito, mas que não éramos Hopi.
Eu sou. Há coisas do passado que ainda não conheci, há coisas do futuro que já esqueci.

segunda-feira, 18 de novembro de 2013

Incómodos


C., 70 e poucos:
Dr.,
A perda de faculdades incomoda-me muito, quer a nível do físico quer do foro intelectual e mental. E o medo da morte e do que pode ir acontecendo até então. Gostava de conviver e agora tenho dificuldade por grande insegurança. Sozinha não saio de casa. Ontem terá sido a 1ª vez: a senhoria mora do outro lado d 1 caminho que, no meio desta espécie de quinta, a atravessa  e em cada extremo tem 2 estradas. Fui mais ou menos até 1/3 para falar c/ a sra. e voltei mas sempre com medo de cair. Ponho tudo em causa e só tenho a certeza que não estou bem e que incomodo as pessoas que não têm nada que me aturar. E o que ouvimos( "os grisalhos, a C.Lag - até gosto de ouvir Adriano Moreira) revolta mas não ajuda nada. Dr. Filipe, agradeço a sua ajuda, nem imagina quanto. Até breve.


Esta senhora foi colega de escola de uma famosa figura do 25 de Abril. Talvez por isso ainda se interessa por política. Temos trabalho pela frente, porque a sua lucidez faz com que ela veja a perda das faculdades como um assalto ao quartel da liberdade. O problema é que ela tem de aceitar a ajuda de quem a ama em vez de achar que incomoda as pessoas.
Neste mato não há espaço para promessas. Não há terceiras vias nem alternativas. Vamos aproveitar a energia e a inteligência desta senhora para fazer com que ela compreenda que envelhecer  combina bem com receber. Mimo dos outros, portanto, laço humano.

sexta-feira, 15 de novembro de 2013

Fé, religião e terapia


O António Damásio disse uma vez que o velho princípio whatever works, baby é um bom princípio quando se ajudam pessoas. A fé, a crença religiosa, pode ser um factor? Claro. Se não quiserem comprar o artigo  têm  aqui uma digestão  no  NYT. 
Ter fé num tratamento ( químico ou de psicoterapia, como é referido nos artigos) é bom, sim, mas não me parece o principal. Ao fim de todos estes  anos e vendo muita gente que por regra nunca entraria no gabinete de um psicoterapeuta ( lavradores, gaspiadeiras, pastores, muitos velhos),  a dimensão religiosa mais importante parece-me outra.
O desespero, um dos alvos desse enorme terapeuta ( até no sentido literal) que foi Cristo : Somos perseguidos, mas não abandonados; abatidos, mas não destruídos ( 2 Corintos4:8-9).
No Educação para a  Morte conto a história ( pp45)  de uma senhora de quase oitenta anos que perdeu a filha única, quarentona e solteira.  Era uma  mulher religiosa, falámos muito  sobre a esperança e fé durante a quimioterapia da filha.  Na primera sessão depois da morte, perguntei-lhe em que pé ficaram as coisas com Deus. Respondeu-me: No mesmo de sempre. Sempre acreditei e durante estes meses terríveis nunca me deixou sozinha.
O pedantismo e os complexos mal resolvidos podem miar,  mas  é  aqui que, da minha experiência ( este assunto tem de ser abordado assim), as pessoas com fé vão buscar um um ramo de cheiros ao deserto.

quarta-feira, 13 de novembro de 2013

Chorinho


Há o do Pinxiguinha, o melhor, claro, e há o outro. Dizia Borges que o não ser querido, o estar doente, são outras formas da dor de dentes. Por falar em raiva de dentes: existe uma linha das teorias evolucionistas que diz que o choro humano é um comportamento adaptativo . Quando choramos  ficamos bebés e isso destila empatia na plateia. As mulheres e os homens que choram nas discussões amorosas, a aluna que chora  no exame oral, o adolescente que chora na repreensão paterna. Muito bonito, mas... e os  que choram sozinhos?
Deixemos de lado os cinéfilos, passemos às noites. Conheci uma mulher que estava grávida  e chorava a meio da noite. Tinha perdido um filho, o que explica a aparente  contradição. De uma forma mais mística,  dir-se-ia que transmitia ao futuro bebé uma verdade de lã: redime-me.

sábado, 9 de novembro de 2013

Inês de Castro e a kairologia


Usa-se no futebol, na descrição dos debates políticos, em todo o lado em que acontece o que devia acontecer. Dioníso de Helicarnasso achava que não. Ninguém conseguiu  definir a arte da oportunidade, nem mesmo Górgias de Leontinos, que terá sido o primeiro a escrever sobre o assunto. Traduzindo em passe vite a ideia de Dionísio:  dependendo a arte do kairos  de uma situação determinada, julgada pelos olhos de quem a vê e ocorrendo num instante preciso, que, por sua vez,  é o produto de momentos anteriores e  coevos, é impossível definir a arte.
A altura certa para dizer a verdade, o momento  benigno para abandonarmos, o segundo preciso em que desistimos. Arrisco contrariar Dioníso ( espero que no instante certo): domina a arte da oportunidade quem duvida do futuro.
O tempo desempenha um papel essencial. Lembro-me de uma mulher. Trintona, engraçada, amarrada um marido desleixado,  um café de aldeia em comum, dois filhos.  Enamorou-se de um tipo que lavava os dentes e tinha facebook. Discutimos a situação várias vezes, a coisa arrastou-se  durante  um ano. Um dia entra-me pelo gabinete com cara de quem foi ao pote das bolachas. O marido morrera de repente. O problema: agora não conseguia juntar-se com o outro. Remorso, culpa, fosse o que fosse.
Lembro-me que estiquei as pernas, olhei para  a janela do gabinete e resumi:  Agora  é tarde, Inês é morta.

sexta-feira, 8 de novembro de 2013

Ordem unida e ordem natural

Direita, falhar, marche. Como se digere o fracasso? Há uma ordem unida psicológica?
Preocupo-me mais quando são personalidades bipolares ou quando existe uma fraqueza associada: um problema de saude, uma perda recente etc. Isto porque vejo o fracasso como uma falange que nos sitia. A guerra é inevitável, a logística essencial.
Quando falhamos,  perdemos meios  e territórios. A primeira tarefa é incluir o fracasso na ordem natural das coisas. A segunda é recuperar o moral. Há gente que não consegue a primeira ( não aceita), há gente que não sabe fazer a segunda.
Aceitar o fracasso não significa aceitar  o que fizemos para fracassar. Significa aceitar que,  tudo considerado - as nossas acções, as dos outros, o ambiente-, o resultado não podia ser outro. A inteligência não serve só para tirar boas notas ou defender teses académicas. Acima de tudo, a inteligência é uma ferramenta para compreender.
Recuperar é recuar. Entender que, como estamos  e decidimos, não somos suficientemente fortes. Recuar para o porto que conhecemos bem ( Séneca) , restaurar o cordame e os instrumentos de  navegação. Visitar amores, comer, beber e dormir. Sonhar.
Se somos  depressivos, o fracasso é visto como natural. Se somos bipolares, o fracasso é inaceitável (na fase maníaca), se não temos amor-próprio ( os psis dão-lhe o nome de auto-confiança), ficamos cheios de pena de nós.

quarta-feira, 6 de novembro de 2013

A carne ou a vida


Estas chitas pequenitas, dentro de dois anos, vão atingir os 114 km/h. É para  isso que a mãe trabalha, é isso que lhes vai garantir a carne. Também sabem ficar quietas: o Henrique Galvão teve uma que dormia aos pés da cama. Sobreviver é dinâmica.
Uma mãe que todos os  dias diz que  a filha é  uma molenga e um pai que  chama idiota ao filho todas as manhãs seriam despedidos da guilda de chitas criadoras. Os papás que vivem as suas vidas de frustração  através dos filhos, incensando-os e perdoando-lhes tudo, idem. Criar é fazer, não é?
Como restaurar? Difícil. Não os posso virar contra os pais, tenho de os distanciar da  intoxicação. O trabalho terapêutico acaba por ser uma  segunda criação. Mostrar-lhes  as ferramentas que têm de saber utilizar. O João dos Santos dizia que estamos  cá para fazer falhar a educação que recebemos. Eu também conheço um tipo que teve seis filhos  e cinco  têm  a profissão do pai. Não somos chitas...
Não temam, não se trata de relativismo agudo. O que o João dos Santos dizia é que, chegando ao fim da adolescência, temos de processar o legado e escolher: com o que ficamos, com o que rejeitamos. Acrescento que  a proporção é variável, mas a condição mental é essa: escolhe, ganha autonomia, separa-te. Depois podes voltar e até comer castanhas assadas  com os velhotes. Isso não conseguem as chitas.

domingo, 3 de novembro de 2013

Do prazer

Lembro-me de uns idiotas que nas caixas de comentários de um jornal criticavam uma professora que se queixava dos cortes: o pecado da mulher era ter o cabelo arranjado. Insidiou-se um anátema: só pode protestar quem não se der ao prazer. Nenhum prazer.
Isto leva-me, se bem me lembro, como dizia o grande Vitorino, ao meu arquivo de prazeres proibidos. À cabeça, uma doente cuja história já contei aqui.  A morrer devagarinho de um carcinoma espinocelular ( tumor no nariz), o seu maior prazer era receber  a filha mais nova que chegava da escola. Lanchar leite com bolachas. Os dos velhos  carregados de medicação que não dispensam um copito também me alegram: é sempre vigoroso ver a vida a estrebuchar. O mais importante é, no entanto, esta anomalia histórica que organiza a nossa vida. Não se pode ter prazer se estivermos nos  braços da crise ? Pode  e deve.
O prazer é constitucional. O seu tribunal está na amígdala cerebral e não meteu férias. Ele  até é obrigatório. Uma das minhas  recomendações habituais a alguém que está na mó de baixo é que compense. Uma hora  extra de sono, uma cozinha por arrumar, um livro cuja  releitura estava  a reter. É uma escolha pessoal. Eu antecipo. Se sei que vou ter um dia de cão, ou se fui surpreendido por um dia de chacal, tiro da caverna um presunto bísaro, abro  um Papafigos e acendo uma Partagas. Amanhã? Os estóicos  não pensam nisso.  Tira o sono.

quarta-feira, 30 de outubro de 2013

A pescadinha


Em mais de vinte anos nunca ouvi queixas da vida sexual em casais de pessoas casadas com outras pessoas e conheci relações extra-conjugais  que duraram até seis anos.
O botão ( e que botão...) delas  tem um telecomando dentro da cabeça. Esse telecomando  deve ser accionado muito antes do outro. Às vezes 48horas antes. Ora, o companheiro distraído passa o dia calado, ou mal-humorado,  e à noite atreve-se.  Não ouviu a chatice que ela teve com um aluno, não notou a alteração que ela fez no quarto de hóspedes, refilou por ela ter chegado tarde de casa da mãe. Como o botão dele é um bocado solipsista, avançou. Esbarrrou-se, como dizem no norte. Os tempos actuais não ajudam nada, mas eles funcionariam da mesma forma se os tempos fossem outros. Elas, mais sensíveis, ou seja, mais compreensivas e inteligentes,  talvez se ressintam mais.
Num casal que vive em comum, o sexo começa dias antes. Antes de ser já era.

terça-feira, 29 de outubro de 2013

Espreitem

"One effect of present saturation is the production of a characteristic form of
sacrifice and consumption that is ultimately destructive. This form of sacrifice
involves a contradiction between the need to construct images of a future and the
desire to make the middle-class subject’s aspirations invisible because their open
expression makes that subject vulnerable. As when, for instance, the desire to buy
a new car is repressed out of the fear that having it will attract thieves, or the
desire to acquire an expensive education is repressed out of the fear that admit-
ting current deficiencies in education will expose the subject’s deficiencies".

México, crise, sacrifício.

domingo, 27 de outubro de 2013

Ansiedad


Se não quiserem o King, usem este  quizz, muito profissional.
A ansiedade é o tempo antecipado. Numa apresentação científica, num encontro  sexual, numa final da Taça,  na espera pelo diagnóstico de possíveis metástases. O que queremos  é apressar a a ampulheta, saltar sobre a flecha, repousar. Os ansiosos são gatos eléctricos.
Sim, há uma mais permanente, arraçada de angústia ou refogada com NOC, mas é de outro campeonato. O que me faz mencionar um caso recente que rebarba  as ideias feitas.
Apareceu-me à frente uma miúda de vinte poucos acabada de se licenciar numa dessas áreas modernaças-tekno que agora competem com os - e estamos no tempo deles - cogumelos. Fez-me lembrar uma actriz cujo nome  agora não recordo: pálida, olhos cinzentos, cabelos pretos compridos. Conhecia já um ou dois familiares, gente boa, mas nervosinha. Senta-se e desata  a chorar.  O Canaris de Coimbra faz a história  e nada, népias: tudo correu, até aí, bem. O problema: medo, ansiedade a calcar o futuro.
A miúda tem mais raça que um puro-sangue e não suportava a ideia de falhar. Mais: queria adiantar o relógio, saber "se dava". Deu. Um par de testes em "eventos" e já conseguiu duas encomendas para duas grandes, muito grandes empresas. Vi-a no outro dia: agora está sorridente mas  cansada. Os coelhos eléctricos são assim.

quarta-feira, 23 de outubro de 2013

Distâncias, lonjuras



O que acontece  quando queremos ter alguém num contrato de associação mas depois não conseguimos ter ninguém  a tempo inteiro?
A L. é uma mulher 30 anos, bancária, vive sozinha, faz o que gosta. Tem  uma história familiar que a faz desconfiar do purgatório das  boas intenções:  andou de um lado para o outro, entre pais e avós ( problemas de migraçoes, distâncias, chegadas). Passada a fase dos amores em prato do dia, sente agora a falta de um respaldo. Pois, mas tem uma pedra no sapato: como confiar?
A pergunta dela é uma boa pergunta, como dizia o Jim Hacker do  Yes , Minister, porque é uma pergunta que todos fazem, mas atira ao lado. A L. somatizou a ansiedade destes anos e, por incoincidência, foi a pele, a última fronteira, que pagou. Para sobremesa, desenvolveu um jogo de damas com o evitamento fóbico: só está onde pode estar. A ilusão do controlo também tem direito à vida.
O desejo é a distância tornada sensível, registou  um senhor  ( Blanchot) com que incomodo sempre os meus leitores de blogues. Uma das interpretações : o desejo é o que te torna indefeso, é o que anula a  distância. A L. tem olhado para  a confiança como condição prévia e por  isso todas as distâncias lhe parecem estradas de salteadores.

domingo, 20 de outubro de 2013

Decisões, indecisões

Os processos de decisão são, para mim, um dos melhores  indicadores de saúde mental e esta é, também para mim, dependente em alto grau da  autonomia do sujeito. Por exemplo, um neurótico obsessivo que aprendeu a controlar o círculo vicioso da redução da ansiedade é tão saudável como o tipo da esquina. Resulta daqui, portanto, que os processos de  tomada de decisões são a expressão da autonomia.
Quando alguém já examinou todo os ângulos, já pesou todos os prós e contras, já ouviu conselhos e , ainda assim, continua  indeciso, costumo fazer uma pausa e um silêncio e pergunto-lhe: O que é que você quer? A vontade das pessoas não é geralmente matar o vizinho ou roubar o banco do lado, por isso não se adora aqui o deus hedonista de pernas tortas. Os indecisos não são sociopatas.
Há muitos factores que colaboram para que o sujeito tenha medo da sua vontade. Uma educação parental asfixiante ( pela adoração ou pelo castigo), uma situação perigosa ( nestes empreendedores tempos, o ter de emigrar), o matagal amoroso etc. O receio de executar a sua vontade , no entanto, é sempre um medidor da falta de confiança da pessoa. Isto explica que, no amor, alguém troque  a humilhação pela companhia.
O trabalho de  restauro é sempre delicado e leva algum tempo. Costumo propor à pessoa uma  espécie de Sykes-Picot: não fazes o que queres mas também não fazes o que não queres. No território vago ensaiamos pequenas incursões até o sujeito começar  a confiar no seu raio de influência.

quarta-feira, 16 de outubro de 2013

E assim, só

Feeling blue?


A distinção é entre estar triste e estar deprimido é escorregadia. Por vezes desaloja a marca temporal. Hoje trago o meu exemplo. Tinha o meu filho mais velho treze anos e foi a uma viagem de finalistas do nono ano. Durante  essa semana andei angustiado e triste. Aparentemente, seria a preocupação com a viagem do miúdo ou com a sua ausência. Não era. O rapaz tinha um horário escolar que fazia com que almoçássemos juntos  todo os dias da semana. Falávamos de futebol ( com A Bola em cima da mesa, para análise detalhada) , rigolades e assim. Durante  essa semana almocei sozinho , mas também não foi isso  que me atirou ao tapete.
O problema foi uma cadeira vazia. Quando, uns anos antes, me morreu o João, com ano e meio, ficou a faltar um à mesa. A cadeira vazia  do jovem excursionista recuperou todo o mato desse dias. Uma angústia irracional, pesada como  o IRS, contratada pela advogada da memória, atropelou-me. A pergunta: fiquei deprimido ou apenas triste?
A distinção é relevante, porque as decisões terapêuticas afectam a vida das pessoas. Têm aqui o resumo das teses de um senhor que se ocupa da espitemologia da mental disorder. Tendo, com  a experiência, a considerar isto: a resposta não está  no que sentes, mas na forma como reages.
Ou seja, se ficamos estuporados pela tristeza, se lhe entregamos  os pontos, e por vezes não há alternativa,  é  a depressão; se analisamos e racionalizamos, reagimos.

domingo, 13 de outubro de 2013

Titular


Os espíritos como o meu não foram feitos para desenvolver os temas mas unicamente para inventar os títulos. Esta sentença de um dos  meus heróis,  Alfonso Reyes ( Tres Diálogos, Outubro de 1909), define com raça o funcionamento das mentes práticas, sim, mas também das criativas. A combinação nem sempre  existe. Há personalidades práticas nada criativas e, claro, gente criativa muito pouco prática. O que as une é  a capacidade de nomear.
Muitas sementes.  Titular uma acção, uma morte, um desejo, uma traição, coisas reais das vidas das pessoas. Não serve para nada?  Serve, serve...
Inventar títulos, reparem. Reyes escolhe bem as palavras. Significa que muitas vezes criamos uma história dentro da história e titulamo-la. Umas partilhas azedas, uns e-mails  dúbios, uma quebra de confiança. Inventamos o título e vivemos  com ele. Este poder de nomear o real é prático, porque nos dispensa de desenvolver a trama. Ela, por exemplo: O que ele queria era uma tipa mais nova.
A criatividade é menos  neurótica-reprimida. Também inventa títulos, mas na linha maníaca: em vez de tentar dar respostas para os problemas, inventa perguntas sobre os problemas. Um exemplo? O do rapaz que olha para os pais e murmura: Por que é que eles não vivem a vida deles?

quarta-feira, 9 de outubro de 2013

Não é por acaso

"Não é por acaso que, na rede de cuidados, por vezes eu reclamava mais unidades de cuidados paliativos. Mas o que faz sobretudo sentido é fazermos formação para que as pessoas que lidam com aqueles cujo ciclo de vida está a terminar sejam tratados com dignidade, de modo a que se sintam acarinhados e bem tratados nos últimos momentos da sua vida", defende Manuel Lemos".

É uma fraqueza que transpira os ossos. Não tens força, não tens equilíbrio, não tens dentes, não tens apetite. Com azar, começas a ter falhas de memória e de orientação. Escolhe assim um terceiro andar escanzelado  numa cidade que nem é a tua terra, os amigos já não visitas porque os cemitérios reservam a admissão. Dá leite ao gato.





segunda-feira, 7 de outubro de 2013

Depressão-quizz

Não está mal feito no estilo pronto-a-comer. Inclui até  três itens muito bem escolhidos.
Provocação de um realista depressivo: tente obter pelo  menos  19 pontos...

sábado, 5 de outubro de 2013

Rede e suicídio

A ligação perigosa. Não sei se leram  sobre o casal que morreu abraçado na cama do apartamento em Lisboa. Ele com cancro, ela ( funcionário do IPO)  deprimida, filhos longe. Onde quero chegar? Ao fogo ao pé da estopa. Outra vez.
Sim,  há milhares de teorias sobre os suicidas e as piores são as que generalizam. Em mais de vinte anos de trabalho  não consegui encontrar dois casos  iguais. A ligação perigosa é sobre  os factores, melhor, sobre a combinação de factores. Se lerem os dados disponibilizados pelas várias agências, oficiais e não-governamentais, concluem que  o apoio psico-social, em rede e de proximidade, pode ter efeitos  preventivos, mas que o melhor suporte é outro.
A rede familiar é a melhor e mais eficaz arma dissuasora do suícidio. Sempre que tenho à frente alguém que elabora sobre  a possibilidade de deixar de ter problemas com o IRS, tento colectivizá-la. Por ex., " não somos só filhos"  ou não somos só pais". É uma forma de trazer  Hemingway ( nenhum homem é uma ilha isolada), uma forma às vezes derrotada, é certo, de ligar o humano a outros humanos, como se o suicídio incendiasse a sala familiar.
Assim, o movimento inverso é o mais justo. Na ausência da rede familiar, a comunidade deve actuar. Tem de actuar.

terça-feira, 1 de outubro de 2013

Outonando à mesa







Dizia Trimalquião  ( no  Satyricon, de Petrónio) que o ofício mais difícil  depois da letras é o de médico ou de cambista. O de médico porque sabe o  que os humanos  têm na entranhas, o de cambista porque descobre o bronze debaixo do banho de prata.  Por conseguinte serviu um jantar especial anunciado pelo escravo de serviço através de uns bilhetinhos. O meu preferido é "sabores tardios e injúria": carne seca  e um pau com uma maçã. Serve o intróito para tentar juntar duas coisas: escrever sobre comida e antidepressão. Ora, o remédio é simples: Camilo.
Um dos maiores é o cego de Landim,  a quem Camilo ( que demonstra  a tradição do arroz de marisco, mas isso fica para outras andanças)   inventa um método de arrasar  as más-línguas:
- Mano António, agora dizem que denunciaste os da moeda falsa.
-  Compra anhos e capões;  atesta essas línguas em  pudim de batatas, embolamos  com âlmondegas,  deita-lhes aziar de ovos em fio, afoga-lhes os escrúpulos em vinho de 1815, menina.

Outonar na cozinha alivia o stress do distúrbio sazonal. A chuva acolhe o pretexto para os primeiros guisados. Um chambão de vitela em caçoila de barro, só amancebado com azeite, cebolas, tinto, alhos e colorau. De ervas junte-se-lhe tomilho fresco e oregãos em folha, daqueles que se trazem das férias algarvias, e em ramo. O decreto: vaca de pastagem açoriana, ou aroquesa, e forno de três horas lentas e gelatinosas, com o futebol do JJ.
Pois, mas ainda há tempo para a transição rápida. Tendes figos pingos de mel e uvas moscatel ou Fernão Pires? Tudo para a frigideira com uma cornetada de  vinho fino. Na travessa depositem uma espalmada de broa, raspada com um dente de alho só para dar cor. Depositem os frutos macerados e cubram-nos com uma fatia de Ilha cura prolongada  ou, ainda melhor, um cabreiro de Idanha.  Cinco minutos de grill vivo  e... mesa.
Se com boa mesa, e não cara, boa companhia e um tecto, não se antideprimem, então até à Primavera.





domingo, 29 de setembro de 2013

Não ser dois






Ele há definições que  só os engenheiros da alma humana ( como Estaline  baptizava os escritores) são capazes . Já andámos de volta do realismo depressivo, sublinhando o carácter homoclítico, sólido, pouco sonhador. Existe uma terra verde  entre esses e os depressivos e nela habitam  Diana e o  herói  de Bioy Casares ( o grande amigo de Borges ). O homem incapaz de amar prefere  a mulher instável  e firme, pecadora e decente. Têm de ler a finíssima problemática da fixação de dunas para entender, mas o tom está dado.
 E o tom é a combinação negativa. Mil vezes preferível ao "Eu e o Rúben completamo-nos". A combinação negativa permite, como lembra Bioy, que cada um seja como é. E  eu acrescento: e que nenhum seja os dois.


sexta-feira, 27 de setembro de 2013

Em pathos

No post anterior, os leitores-participantes  estiveram muito, muito bem. Quase senti empatia com eles.
É um ingrediente tramado. No outro dia, uma mulher abriu a conversa sobre o marido suicida com " Pois  o fulano não se lembrou de mais nada". Tiro de .570 Nitro. Não consegui empatia nenhuma durante  toda  a consulta. Foi desconfortável.
Fora do gabinete sou  muito  pouco empático - por isso abri este post como abri - , mas lá dentro é diferente. Então quando a coisa envolve mortes alcanço um estranho e elevadíssimo  grau de empatia com os sujeitos. Nada de marmeladas, antes pelo contrário. Confronto, arrisco, mas sempre  num clima de solubilidade impressionante, mesmo com gente que acabo de conhecer. A frase daquela mulher inibiu-me. Durante  uns minutos detestei-a. Não vos conto o resto, mas tinha ,  e  tem, boas razões para  a  amargura. Registei, mas não consegui, e ainda hoje não consigo, sentir com ela.
Podemos  ser  e não ser empáticos? No meu caso não é pose, acreditem. Sou pouco empático porque sou egoísta, diletante e tenho défice de atenção. Já no gabinete, sobretudo nos tais casos, sinto-me convocado para a guerra.

quarta-feira, 25 de setembro de 2013

O fogo ao pé da estopa

Depressão, colesterol elevado, menos  actividade sexual. Aparentemente, sem  relação.
Talvez não. Peguemos  num dos serranos do Candal, terra do Louzã Henriques, e imaginemo-lo. Deprimido, com colesterol elevado e sem pavio?
É claro que tudo é possível, mas também há muito tempo  que se discute o perfil psicológico do homem avançado. Desde o velho Freud  ( mesmo velho, dos últimos dias), que sintetizou com acerto:

-  3 causas da miséria: o nosso corpo, os outros, o quotidiano.
-  3 remédios: as satisfações substitutivas, as distracções, os estupefacientes.

Darei seguimento  a isto,  mas para já  fiquemo-nos pela  análise  da terceira  causa. As doenças metabólicas, as rugas, a barriga etc. Os outros:  as relações. Pais, mulheres, maridos, filhos, vizinhos, colegas. O quotidiano, por fim: o que é? No tempo do Freud tardio, era uma brincadeira comparado com o de hoje. Dizem os progressistas que estamos melhor, dizem outros que estamos mais apertados. Pouco me importa.
O fogo ao pé da estopa até o diabo lhe assopra. As depressões aumentaram com a sociedade de bem estar ou foi ela que deu resposta à tristeza que sempre existiu? Respondam vocês, que chegou o Outono, a coisa das folhas caídas.

segunda-feira, 23 de setembro de 2013


A fórmula é de um poema de Lonfellow e aprendi-a no A  Chinela Turca, de Machado de Assis: "Never-for ever!/ For ever-never!". Parece duplipensar, mas é mais do que isso, porque desliza bem à mesa dos projectos que as pessoas fazem. Cada vez mais me convenço de que boa parte da angústia - e do IRS associado, a ansiedade -  vem do peso das ilusões.
Desejar, sonhar, planear. Sim, tudo inócuo, no mínimo. O problema é quando compomos o futuro a partir do nosso disfarce de Deus.

sexta-feira, 20 de setembro de 2013

De peso

Anda nos trintas, pesa 80kg, nunca teve um namorado, há história familiar depressiva. A pulso, com uma ligeira ajuda minha, estudou, formou-se ( enquanto trabalhou) e agora espera. Duas coisas: uma colocação profissional e um corpo que não chega. Fez sempre tudo o que lhe pedi. Lutou como eu não lutaria, nunca desistiu, caiu e ergueu-se vezes sem conta. O corpo é a mortalha da vontade.
No outro dia disse-lhe para parar. Aceitar o que é. Nos chats de engate incomoda-se. Com  a linguagem porcina, com um mundo ao qual não pertence. Um par de más experiências e voltou à estaca zero. Quem me pega?
E é assim. Tantas vezes de volta de mortes,  divórcios sangrentos, ruínas financeiras e é a porcaria da balança que me deixa sem cartuchos. Aceitar o que é. Parece fácil ficar à mercê de imbecis que se vão aproveitar da sede.
Depois  há a biografia dela. Tenho a impressão de que a S., uma vez mais, me vai dar uma lição.


terça-feira, 17 de setembro de 2013

Cláusulas


No outro dia, uma senhora deu ao meu gabinete uma luz especial. É minha leitora ocasional ( dos livros e daqui) e talvez sorria ao ler isto. Contou-me ela que fez um acordo de infidelidade com o companheiro. Até aqui ( tens de me contar/ não te podes apaixonar etc) nada de novo. Brilhante mesmo foi uma cláusula especial: a infidelidade teria de ser limitada geograficamente. Sem entrar em detalhes: podia ocorrer  numas zonas do globo e noutras não. Parece bizarro,mas tem uma explicação: certas zonas eram exclusivas da relação.
Fiz uma associação entre isto e uma das luvas que calço quando penso no vínculo humano mais estreito. Refiro-me a qualquer relação, portanto,incluo a que temos com os nossos filhos ou com o Benfica. O melhor que nos traz o amor é fazer-nos melhores. Eu sou melhor porque a minha mulher, e outras antes,  e os meus filhos me fizeram melhor. Não foi um grande avanço, mas sempre foi alguma coisa.
Ora, a cláusula descrita é apenas uma extensão de outras não-escritas  que existem por aí aos magotes. No par mamã-filho, conheço maduras que se gabam de nunca terem feito sacrfícios pelos filhos, julgando assim expurgar o vínculo de qualquer ar de peso.  A cláusula da nossa dama concede à relação amorosa a capacidade, ilusória,  de existir como se não houvesse pessoas.Como é bom de ver, há pessoas e pessoas que ignoram cláusulas.  Resultado: vendemos a alma ao diabo.


segunda-feira, 16 de setembro de 2013

Pais sargentos

Muitos miúdos vão começar os seus cursos universitários, o que significa, para mim, que daqui a uns meses algum aterrará à minha frente, desalentado com a escolha. A crise  mudou alguns hábitos de selecção? Talvez, mas não mudou o problema dos papás que querem o filho médico ( so to speak).
Já tive gente a desistir no terceiro  ano, já tive gente a querer mudar antes do Natal. Deixemos de lado os casos em que a opção foi inteiramente assumida pelo jovem e centremo-nos nos outros. Por que motivo  há paizinhos que escolhem o curso dos filhos?
É nas manadas de pais-doutores que tenho registado mais asneiras. Da influência pouco discreta à quase exigência, são pais que querem escolher pelos filhos. Uma variante do complexo de Napoleão: o meu menino tem de me dar motivos de orgulho, a minha menina é sobredotada.
Esta posição egótica revela quase sempre um entendimento da prole como uma extensão do ego. Frequentemente, o resultado é desastroso e o trabalho terapêutico vê-se a braços com uma dupla tarefa: resolver a sensação de fracasso e restaurar ( ou inaugurar...) a autonomia do miúdo.

quinta-feira, 12 de setembro de 2013

Obsessão e memória


Sebald conta a história de um escritor do pós-guerra na Alemanha, Alfred Andersch. O homem tinha  a necessidade obsessiva de se confessar. Ficou na Alemanha nazi.O interessante, como nota Sebald, é que apesar da obsessão  em se justificar, a memória de Andersch opera selectivamente. Ora aqui está o osso.
As desordens obsessivo-compulsivas apoucam as pessoas. Quanto mais inteligente for o  sujeito mais ele se ressente da irracionalidade da doença. Recordo uma mulher, pequena empresária nortenha, que durante anos nutriu a obsessão de que se tinha envolvido com um  vizinho. Ela nem falava com o homem. Pois bem, muitos anos mais tarde desenvolveu a obsessão de que a a filha mais velha se ia envolver com um dos filhos do sujeito.
Qual é o problema da memória? É que   a memória selectiva do obsessivo-compulsivo alimenta a irracionalidade do sintoma. Por exemplo, a mulher da história, quando incorporou a filha e o filho do sujeito na ideia obsessiva,   obliterou com cuidado a sua própria biografia: nunca falou com ele, casou-se, teve filhas. A obsessão é intemporal e amnésica.

terça-feira, 10 de setembro de 2013

Cozinha, depressão & liberdade

 ( dedicado ao Vasco Lobo Xavier)

Acompanhei-o durante algumas sessões. Quarentão, trabalhava numa empresa, estava farto, daí  a ansiedade e algumas notas depressivas. Também gostava ( gosta ainda?) de cozinhar, de maneira que reservávamos sempre alguns minutos finais para trocar ideias. Ainda que  um bocado impressionado com a aportuguesação das técnicas do Can Fabes e similares,  a sua referência era ( é?) a nossa cozinha tradicional,  Meteu na cabeça mudar de vida e , em plena crise, abrir um restaurante. Isto mexeu comigo.
Ele pensou ( nunca  disse abertamente) que eu o dissuadia por inveja, que também eu gostaria de fazer o mesmo.Não gostaria, porque quero muito à  boa mesa, à cozinha, à  procura do nabo perfeito, da ervilha com sabor autêntico, da garoupa com sabor  a garoupa, de umas costeletas que um velho talhante me envia de uma  aldeola ao pé de Vinhais. Sobretudo gosto  da liberdade. Se me apetecer complicar e fazer uma galantine de percebes em toupée de polenta, faço.
Isto remete-nos , como dizem os tipos das mesas redondas, para a questão da realização pessoal, essa espécie de mamba negra disfarçada de Cinderela.  Não há uma realização pessoal, muito menos via profissionalizante. O humano realiza-se, já que temos  de usar a palavra, em muitas coisas e em muitas medidas diferentes. Essa invenção da cultura da especialização é uma cena que não me assiste.
A certa altura,  indaguei dos  pratos principais e assim. Fala-me em bacalhau na brasa, afinal,  na chapa ( a fraude restaurativa começa no ovo) . Perguntei-lhe então se se via  a chapear  800 postas de bacalhau  por ano.

domingo, 8 de setembro de 2013

Abóboras


Antes de morrer, já no hospital,  uma  amiga/doente chamou-me. Depois do pow wow habitual nestes casos,  diz-me: Filipe, tenho lá uma abóbora para ti, para fazeres as papas. Durante muito tempo arrumei isto na lucidez alucinada. Só agora começa a fazer sentido.
Ela não disse que me ia levar a abóbora  a casa  nem mencionou qualquer cenário de alta hospitalar no qual me pudesse receber em sua casa com uma abóbora de presente. O que ela disse foi que tinha uma coisa para mim, ou melhor, que me queria ter dado uma coisa. Se leram A morte de Ivan Ilitch, que,  já escrevi várias vezes, é um manual de educação para  a morte ( o verdadeiro), compreendem a inquietação. Tudo tem a ver com o tempo.
À vista do fim certificado, o tempo aparece pela primeira vez  amputado de uma dimensão. Como já não tinha futuro, a minha amiga/doente resolveu a equação: ela tem lá ( presente e passado) uma abóbora para eu fazer as papas: o futuro é para os outros e, neste caso, com doçura.

quinta-feira, 5 de setembro de 2013

Estradas


Ou leram o livro ou viram o filme . Espero que tenham lido o livro. Muito mais do que o cenário apocalíptico e o frisson do perigo, a essência é o instinto de protecção. O churrasco de bebé não está lá só para impressionar: tudo é possível. Em princípio.
Por que motivo os laços se apertam quando o ambiente é mais agressivo? Errado. Não se apertam mais, estiveram sempre apertados.O que acontece é a naturalização do processo, como se a verdadeira matriz  da protecção e da responsabilidade se descobrisse quando é mais necessária.
Nos divórcios azedos, fico sempre fascinado com a facilidade com que alguns pais usam os filhos para o acerto de contas. Não lhes parece ocorrer que não há muita diferença entre isso e deixá-los sem almoço ou  livros escolares. Tudo é possível em princípio? Sim, até não entender que num divórcio os filhos estão na estrada.


terça-feira, 3 de setembro de 2013

Mais alianças

Nenhuma  parte da nossa vida está tão exposta ou vulnerável como aquela que mais amamos. Se compararmos isto com Freud - somos um corpo exposto a mil feridas -, percebemos a distância entre  a leitura de ligação de um clássico ( Séneca) e o solipsismo hodierno. Sim, a ferida pode ser a perda do outro, mas o acento é sempre o sofrimento pessoal, enquanto que em Séneca é  a dependência do outro: a nossa vida é o outro.
Alianças, ligações. Não precisamos de viver muito para compreender o peso delas, mas, e falo por mim, a minha profissão foi-me obrigando a descobrir-lhes novas qualidades. Nestes tempos de dureza material, tentei fotografar como elas se reequilibraram. O  dinheiro é uma categoria escorregadia para estes assuntos, mas também é um bom teste.
Noto, em pessoas que até já acompanho há muito tempo,  que o empobrecimento não revela piores facetas onde havia laços de sangue . Já nas alianças orgânicas ( por oposição às mecânicas durkheimianas) , a coisa pia mais fino. Se há uniões/casamentos que estão a sobreviver, sobretudo as que têm filhos, o tom geral é de individualismo. Bem, a selva quando nasce é para todos.

domingo, 1 de setembro de 2013

Sad


O nome técnico é Seazonal Affective Disorder.  O povo sempre falou no cair da folha e no rebentar da folha. Poupemo-nos à descrição  perfunctória e avancemos: Sentes a mudança? E de quê?
Pertenço ao grupo dos que  reagem mal à mudança. Não pela mudança em si, mas pelo processo.Por exemplo, o período que antecede  o início das aulas dos miúdos. Ou aquelas primaveras bizarras em que a noite ainda não chegou  às sete da tarde ( ou da noite?) , mas chove e faz frio. Como eu, muitas pessoas sentem o desconforto da passagem de ciclo, porque é uma  passagem.
É claro que o SAD, o verdadeiro, o da bayer, bate mais forte. Seja como for, o princípio é o mesmo.Talvez haja algo de natural nisto. Sentimos que o  ambiente muda  sem sermos ouvidos e que temos de nos adaptar. Confiro na clínica  que aqueles que também já passaram por situações terriveís  e inesperadas são mais susceptíveis de sofrer da forma ligeira do SAD.
Como sempre, a fórmula é presentificar. Projectar  para o  dia que ainda corre (  quam minimum credula postero...) coisas que dependam da tua vontade. Coisas boas ou coisas difíceis que tenham de ser feitas. O apaziguamento decorre da ilusão de que tudo muda, mas muda devagar.

sexta-feira, 30 de agosto de 2013

A vida dos velhos

Os deuses ou a natureza são impiedosos. Na antiga Rodésia, os caçadores brancos impressionavam-se com o costume dos nativos: quando um velho já mal se mexia, era levado para o mato  e abandonado às hienas e aos  leões. Isto está na origem de um velho debate sobre a formatura  e mestrado dos devoradores de homens, mas, por muito interessante que seja, e é, não vem ao caso.
A melhor companhia do velho é a velhice. Centenas de doenças metabólicas, artroses  avulsas, solidões estelíferas, chatices do neurónio motor, cataratas.O instinto de vida é tal que eles lutam como hoplitas delirantes.
O meu dia termina quando um velho, lúcido, acabado, só, me diz que é melhor morrer. É muito aborrecido dar razão a quem sabe mais. E depois penso em leões.

quarta-feira, 28 de agosto de 2013

O que é resistir?


O tempo e resistência são as categorias maiores. Viradas para a sobrevivência à perda, dediquei-lhes um livro, São, no entanto, gerais. Uma ruptura amorosa, um despedimento, uma doença, enfim, todo o mato de erva-de-elefante acoita testes à forma como as combinamos.
No outro dia,  dizia a uma mulher, ocupada com um teste de peso, que, quanto mais difícil é a exigência, mais possibilidades temos de cortar orelhas  e sair em ombros. Naturalmente, achou-me tolo. Mais ou menos. O que lhe quis transmitir-lhe é que quanto pior é o desafio, mais possibilidades temos de dar o máximo.
O instinto de sobrevivência é uma droga poderosa. Se já estiveram em situações very touchy, deram conta que tudo parece acontecer em cãmara lenta É como se quiséssemos apreender tudo, retalhar as fracções de tempo para não nos escapar nenhuma alternativa. Por outro lado, diante de um ataque leonino, o Péricles dentro da nossa  cabeça mobiliza o povo todo.
Mesmo que sejas dado à melancolia fatalista, se estiveres entre a espada e a parede há sempre a esperança que ganhes tino: se queres continuar a viver a bela melancolia, apoia-te na parede e salta sobre a espada.

terça-feira, 27 de agosto de 2013

Mais um quizz

Simples e despretensioso.
 "Though it sounds as if it might be depressing, defensive pessimism actually helps anxious people focus away from their emotions so that they can plan and act effectively".

Há alguma lógica nisto. As emoções são muitas vezes lixo estratégico. Por exemplo, uma pessoa que estou a ajudar tem um problema  específico: chumbou já 15 ( quinze) vezes no último exame do curso. Tomou o professor de ponta e o bloqueio começa quando entra na sala de exame.

domingo, 25 de agosto de 2013


No Amor & Ódio andei muito de volta dela. A clínica de todo os dias confirma-a. A amígdala ( a do cérebro...) e  os sentidos servem muito melhor quando são postos ao serviço da mais infalível realização da cultura: a aliança.
Para isso é necessário que sejamos capazes de ultrapassar a nossa história.Entendo por nossa história o arquivo de desejos, reivindicações e mutilações várias que nos preenchem a vida. Ou seja, temos de prescindir de parte de nós. Crime contra a vontade hodierna? Tanto me faz. Aprendi com irmãos que se apoiaram  toda a vida, velhos que inventaram doenças desconhecidas para morrerem no mesmo ano, filhos  para quem mudar as fraldas ao pai é um momento igual ao da primeira ida à bola.
A aliança é o reconhecimento da nossa humanidade pelo outro. Numa velha fórmula de Malraux, uma defesa contra a incessante solicitação do mundo.E muitas alianças, nestes dias de recuperação estatística, estão aí para o que der e vier.

sexta-feira, 23 de agosto de 2013

Assai tormentata


Como tenho algumas traduções de Séneca, escolho uma na mais bela língua: brevissima, invece e assai tormentata è la vita di coloro che dimenticano il passato, transcurano il presente e temono il futuro. A síntese do andaluz é perfeita. Quem esquece o passado, negligencia o presente   e teme o futuro, só nos dias do fim compreende  que ocupou o tempo a fazer coisa nenhuma.
Há combinações ( não há moelas). Posso pagar os olhos da cara para fazer desaparecer  as rugas, cumprir dieta nazi mas viver angustiado com o fim do mês. Ou passar o tempo a remoer, mas ignorar as isoflavonas de soja e o fim do mês. Enfim, os piores são os que preenchem as três categorias.
Remédios? Sim, os químicos, que te tornam insensível à tua miséria ( o papel que Freud destinava aos estupefacientes). O problema é que o efeito não dura muito.
A minha  aposta é no presente.Ele é o eixo que te permite encaixar os golpes passados e fortalecer-te para o combate de amanhã.Por exemplo, se perdeste  um filho ou um amor e tens agora outros, leva-os à feira e comam algodão-doce. Se receias não chegar a velho, alegra-te por os teus dias sobre esta terra terem dispensado algálias e canadianas.

quinta-feira, 22 de agosto de 2013

Não há sexo com amor

 O amor é a resposta, mas, enquanto esperamos pela resposta, o sexo levanta algumas questões interessantes ( Woody Allen). Não há sexo com amor. São antagónicos.Deixando de lado o comercial, o criminoso e o frete (quase 100% feminino,  até hoje só conheci um homem que o assumiu) , já de si eloquentes premissas, fixemo-nos nos amantes, namorados e casais apaixonados.
Quando a cama começa, ou seja, quando a amígdala começa  a bombar  como a Popota, o amor tem tanto lugar como  a leitura do Diário da República. Se nesse momento nos trocassem o/a parceiro/a, só daríamos  conta na altura de acender o cigarro. Não acreditam?
A crença de que é aquele corpo que queremos é uma boa crença.  O problema é que quem faz o trabalho tem autonomia* ( não que leve muito a sério este tipo de estudos, mas mal não fazem).
Os deuses e a natureza até montaram a coisa bem. Casais, amantes e namorados podem acreditar que fazem tudo com amor  enquanto o seu cérebro vagueia livremente pelo bosque. Por outro lado, esta forma de ver a coisa ajuda  a compreender muita violência e morte em casais: afinal, a cama não significava nada.


Nota: o *primeiro estudo do grupo não tem veracidade  comprovada,  como uma leitora, e bem, me avisou.







terça-feira, 20 de agosto de 2013

O efeito de Lúcifer


Isto é o retomar de uma  antiga experiência da psicologia social e resume-se  assim: todos somos capazes de tudo. Não é verdade, pelo menos no sentido da equalização da capacidade.  Bem, o cabeça de dinamite já o tinha dito no século XIX: o bem e o mal são ramos da mesma árvore. Pois, mas são ramos diferentes, não é?
Há pessoas boas, sim. E melhores. tenho atendido gente que nem no Inferno seria má, quanto mais no protectorado lusitano. Levadas a extremos insuportáveis, são capazes de coisas terríveis? Claro. O problema, como nos penaltys, é a intensidade: há pessoas que não necessitam de ser levadas a extremos nenhuns para fazerem coisas horríveis. O cardeal de Retz sabia-o: o mal faz-se sem esforço, o bem dá muito trabalho.
Vem isto a propósito de da justificação da situação de crise para certos comportamentos, assunto com o qual ando às voltas por causa de outras caldeiradas. Refiro-me aos que prejudicam terceiros sem benefício nenhum para os autores. Depois há  a cronologia. Beltrano, tão calmo e boa pessoa, matou a ex-mulher de repente, por ciúmes, coitado.Pois, era boa pessoa enquanto a ex-mulher não se arranjou com outro. Bastou  a Beltrano pensar  em pernas abertas e lá se foi a boa pessoa que era.
 Imagina, leitor: quantos centímetros tem a camada de verniz que te separa de uma besta? Se tiveres dificuldades, regressa a Levi, Primo Levi.

segunda-feira, 19 de agosto de 2013

De caras

Is it something or is it something?

Ela apoderou-se de mim



Podia ser  o amok ( lá iremos um dia), mas hoje é outra coisa. Todo  o humano dado à contemplação e ao ócio ( virtudes gregas antigas) a reconhece. É uma mistura de torpor com lassidão. Também ocorre na versão sonolenta. Em O Desbaste do Bosque, Tolstoi anda de volta dela. Ora é o  soldado Velenchuk, que sem ter bebido uma gota se sente atirado para o chão ( ela apoderou-se de mim)  e lá fica, ora é o protagonista, Nikolai Fiodorovitch, que dorme o sono especial e pesado que se tem nos momentos de preocupação perante o perigo.E há também o oficial que discorre sobre o Cáucaso e há outros. Os escritores é que sabem.

Seja como for, é um estado defensivo, de hibernação, como se quiséssemos fazer esperar  o mundo.E é um estado particularmente  adequado aos dias de moinho que vivemos. Uns, cansados da guerra, como Velenchuk, outros, angustiados com o dia seguinte, como Nikolai.
Tenho atendido pessoas que, sem saberem, são personagens desta divagação  de Tolstoi.  Não é bem  depressão, não é bem sonolência, não é bem indiferença. Suspensão?


domingo, 28 de julho de 2013

Intervalo

Uma semana mais difícil e depois uns dias sem net. Volto a partir de 15 Agosto ( se os deuses quiserem).
Fiquem bem.

sexta-feira, 26 de julho de 2013

Sexo de crise



O casamento ( com ou sem papel) já é antinatural, torná-lo ainda mais difícil não é boa ideia.
Já é antinatural porque é um produto da cultura. Os tipos da psicologia e biologia  evolucionária dizem que terá começado com com a frequência da ovulação : fica por perto ( de preferência à entrada da caverna e com carne fresca) porque nunca sabes quando é o dia... Depois, a sedentarização e a necessidade de reduzir  conflito pelos  direitos à brincadeira continuaram o trabalho. No Ocidente, o cristianismo fez o resto.
 Ora, se o natural é a poligamia e o casamento é cultural, alguma coisa tem de ser feita. Culturalmente Por exemplo: quinze anos juntos, começam o sábado a discutir por causa do arranjo do carro, continuam à tarde, regressando pela milésima vez ao mau feitio do pai dela e, depois, à noite, quando acaba o filme, o tipo começa a dar-lhe umas beijocas e a dizer-lhe vamos lá querida.  'Tá mal, 'tá claro que 'tá mal.
Os casais deviam ter aulas com os amantes. O cornudo devia ver vídeos do amante da mulher. Recordar, ou aprender, que a qualidade supera, de longe, a quantidade e que obom sexo começa às vezes com 48horas de antecedência.

Não me esqueci

Em breve  um e-mail para conversas em privado e a abertura  de um dia de consulta social para quem tem dificuldades.

quarta-feira, 24 de julho de 2013

Amar, derrotar






Ao contrário da vulgata, entendo que o amor pode , e deve, ser definido, estudado, esquartejado, analisado. Os nosso primos bonobos fazem tudo o que fazemos excepto cultura e  linguagem : por isso desconhecem o amor. Continuando a discussão sobre o não precisar do outro, abro mais um postigo: todo o grande amor é uma  derrota absoluta. Se quiserem, à Benfica, no minuto 92.
Quando sentimos que  a nossa vida está enroscada noutra e que a sua pele ainda tem o sabor do primeiro segundo, é óbvio que vamos perder o jogo. No Amor  & Ódio, conto a história de um casal de meia idade. Reformados, ela ainda  era vistosíssima, ele, músico de banda nas horas vagas,  parecia o Woody Allen. Estavam preparados para  a melhor fase das suas vidas, até porque ele tinha conseguido, finalmente, resolver um pequeno problema, digamos, fisiológico. Em seis meses ela morre de cancro da mama.
Se as famílias felizes não têm história ( Tolstoi) , os grandes  amores não têm felicidade.

terça-feira, 23 de julho de 2013

Let´s shake up

Este artigo , de um polemista conhecido, não diz só mentiras. Os departamentos  de  ciências sociais não estão assim tão parados, mas é verdade que às vezes parece que não nos libertámos do debate entre Margaret Mead e GH. Mead; há ou não comportamentos independentes da cultura?
Uma vez  defendi, numa palestra de um congresso de pediatria, que o  facebook não trazia nenhum perigo especial e diferente  para os meninos. Caíram-me ( amigavelmente ) em cima, claro, mas respondi que devíamos rever a forma como estudamos  os toddlers e os adolescentes. Por exemplo, analisar relações naquilo que nos anos 80 se chamava grupo de iguais, em que a rapaziada se encontrava nun café e ia conversar, charrar, beber, namorar, para casa de um deles, não faz sentido hoje.
Muito mais do que psicologia adolescencial, precisamos hoje de disciplinas que cruzem culturas de comunicação ou  tecnologia emocional.

domingo, 21 de julho de 2013

SPT sem você


Bonanno diz que as coisas más acontecem. Já aqui andei de volta do osso, não regressarei à resilência ( essa adaptação anglo-saxónica de estofo), interessa-me mais o célebre  Sindroma Pós-Traumático.
Quando era miúdo, via Henrique  Galvão , fascinei-me com o país   pequeno e pobre  que manteve uma guerra em três frentes africanas. Não compreendia. Depois fui coleccionando material ( algum  não publicado, porque o meu sogro era ocoronel), fui fazendo a minha formação política ( comparei com a guerra da Argélia, por ex.)e percebi que não foi bem uma guerra como Tucídides me ensinava: a esmagora maioria dos soldados só queria  estar  sossegado.
Mais tarde, quando fiz o serviço militar, esta ideia foi-me confimadíssima por muitos veteranos. Muito mais tarde, como profissional, fui coleccionando histórias de ex combatentes  em África. Juntando a minha experiência (a morte de um filho e mais um susto especial )  à  deles, percebi que o SPT é muito mais do que apenas uma má recordação.
Bonanno compara tudo: perdas de filhos e de amores, acidentes de viação, guerra do Vietname e do Afeganistão. A teoria, que já aqui trouxe,  é  a mesma, mas com uma pitada de Nietzsche : ao SPT escapam as personalidades equlibradas e previamente fortes, às quais a pancada torna ainda mais fortes. O SPT tem outras bordas e há uma que me interessa particularmente.
Não é tanto  a recordação, ou  o peso do episódio,  que faz com que a pessoa se vá abaixo. Existe um problema ontológico.O veterano do norte de Angola, por exemplo, acha que ter lá estado deu-lhe cabo da vida. Mais do que a memória das picadas traiçoeiras e dos camaradas esventrados, o que ele queria era não  ter lá estado.
O SPT encobre a dificuldade em  aceitar uma parte da nossa vida. Nem tudo são rugas que se resolvem numa ida à clínica de estética.

quinta-feira, 18 de julho de 2013

Bipolar quizz

A fronteira  é mais porosa do que a de El Paso-Juarez ou Valença-Tuy. Nos extremos, o quadro é identicável e ou  é uma desordem neuroquímica com incidência hereditária ou uma personalidade homoclítica ( normal de morrer) , mas no meio há muito sumo.
Faça o teste ( já fiz...).

terça-feira, 16 de julho de 2013

O segredo do amor

Não precisar do outro.
 Por estranho que pareça,  em mais de vinte  anos de consulta, as pessoas que conheci que mais felizes foram não precisavam do outro. Talvez não tão estranho. Seja uma relação de semanas  seja a de uma vida, o amor, a mistura certa de sexo, companhia, confiança e riso, é tanto melhor quanto mais independente. De tudo.
Se o outro está lá para nos resolver abandonos anteriores, inseguranças várias,  neuras, políticas de controlo ( posse e ciúme), precisamos dele. Torna-se um artefacto, o amuleto sem o qual a vida não faz sentido,uma tenebrosa confissão de impotência.
Se, no entanto,  o outro faz parte do nosso  gosto pela vida, torna-se, ipso facto, parte  de nós. Em momento nenhum o desmentiremos, nunca diremos que a vida não faz sentido sem ele. Nenhuma parte da nossa vida se sobrepõe ao todo, não nos cabe decidir sobre o que tem existência própria.
É por isso que o amor é eterno.

segunda-feira, 15 de julho de 2013

Negados


Os adolescentes são muito mal vistos nas colunas de opinião. Mea culpa, uso muitas vezes a expressão atitude adolescencial, mas com luvas : aplico-a em adultos. Os adolescentes são também vítima de assédio  pseudopsiquiátrico: parece que é preciso fazer um curso para ter um em casa. Em cada dez pedidos de ajuda que recebo, reenvio oito à  procedência. Treinar ( ensinar maneiras, bons hábitos, levar a gastar energias, brincar etc), só treino cães.
Mal ou bem, cresci, como muitos, com irmãos, primos, sobrinhos.Dá-me pena conhecer adolescentes enfiados num T2 com os pais, a playstation e o computador. .Sempre houve, é verdade, adolescentes narcisistas,mimados, incapazes de aproveitar a vida. Também há adultos assim. E velhos. Não é por aí.
O que me preocupa, nesta Atlãntida agora Portugal, é que os adolescentes estejam a envelhecer  muito depressa. Sinto-os a viver os problemas dos pais: o desemprego, a hipoteca, os cortes, a tristeza.
Talvez  este crescimento acelerado os distraia da vida electrónica e artificial, talvez não seja totalmente mau. Por outro lado,  há miúdos que se começam a sentir como um fardo. Económico, emocional ( a mãe tem de carregar  nos ansiolíticos receitados para  a crise) e, sobretudo,  político: não produzem, só se divertem, os danados...

sábado, 13 de julho de 2013

Os fins justificam os fins


Os assassinos das suas mulheres recebem uma compreensão que é negada aos suicidas. O laço emocional,  a raiva, até a violência , parecem explicar.  Conferem, pelo menos, terra ao vaso. O suicida fica sempre sozinho na sua desistência, na sua cobardia, dizem alguns. Comparação bizarra esta? Nem tanto. Em ambos os casos a mesma doutrina: os fins justificam os fins.
Jacquemort, o psiquiatra com laivos de obstetra do L'Arrache Coeur, conclui, a certa altura, diante da paixão que Clémentine tem pelos filhos, que gostaria de poder sentir uma, mas, à falta de melhor, pode sempre  ir observando.
Quando matamos o  nosso amor e  quando nos matamos ( muitas vezes dois em  um) também observamos. O quê? Como seria a vida se tivéssemos uma.

quarta-feira, 10 de julho de 2013

Perdida

Vinte e muitos mas já sem estômago ( um resíduo). Sem trabalho, porque quando regressou das cirurgias e  da quimioterapia, o posto de trabalho, por causa da crise,  estava extinto como o pássaro Dodó. Vive numa aldeia, com a mãe,  onde anoitece  muito depressa. Tem medo. Discordo.
Dizia o dinamarquês sorumbático que a angústia é  a etapa psicológica que precede o medo. A nossa perdida  inverte  a equação: agora sente  angústia, antes teve medo. De cada vez que tenho dificuldade em engolir, fico cheia de medo.São só palavras.
Fala baixinho, é bonita, tem um cabelo e uns olhos parecidos com os da mãe dos filhos  do Don Draper ( para quem vê  Mad Man) . A angústia dela é um protesto burocrático contra o anti-destino: sente que não pode esperar mais nada deste mundo.
Falamos muito. Ao vivo e no e-mail que sobrevoa serranias até chegar, nem sei como, à sua aldeia. O que lhe digo ? Não desisto de ti.

segunda-feira, 8 de julho de 2013

Elas falam, eles ouvem


Aviso: isto só se aplica a casais antiquados, ou seja, hetero e  casados, ou  juntos, há muito tempo.
A queixa é recorrente  nelas. Chegam a casa, miúdos já crescidos e nas suas vidas, e querem conversar.Com  a vida mais difícil, mais aconchego querem.  Os marrões  respondem por monossílabos.
Se lerem o Dunbar ( os distraídos), que eu o Luís Januário andámos a discutir na Idade Média da blogosfera, percebem que  "cimento social" são elas. Se dependesse dos homens, mesmo a mais pequena das aldeias seria Tóquio no que toca  a novidades. Nas famílias, quem une,  cose e restaura as relações são elas. E com o quê? Com a língua.
A pergunta de cem milhões que elas me fazem é: Por que é ele assim? Ficam tanto mais picadas quando o vêem muito falador com os amigos na Junta, no clube de bola, nos casamentos.É uma boa pergunta, porque a resposta está na pergunta.
Eles foram  sempre assim, elas é que mudaram.Passou o tempo de fazer a casa, criar os miúdos, veio a meia idade e eles ali ao lado. Elas começam a pensar neles como um amigo, um companheiro, uma extensão doméstica do seu mundo de cumplicidades e gossip. Eles não estão nem aí. Eles  dizem-me que não falam porque já falaram tudo. É claro que se caírem por uma jovem colega de trabalho a coisa muda. Claro, tem de se trabalhar a relação.Claro.
 A rainha Sofia dizia que o silêncio mata o amor. Tem razão. Sabem elas e, pelos vistos,  eles também.

domingo, 7 de julho de 2013

Do controlo

As ideias da Genie são comuns, mas no último parágrafo ela aponta o único caminho: não podes controlar as finanças mundiais  mas podes controlar as tuas. Ao limite ( fome, frio, sede) isto é verdade. Antes do limite, também. Resta o link entre ansiedade e controlo.
Nunca conheci sofredores tão profissionais como aqueles  que pretendem controlar todos os aspectos do meio em que vivem ( família, amigos,doenças,  trabalho, cão, vizinhos etc). Os distúrbios obsessivos ( com ou sem manto compulsivo-verificativo)  e  fóbicos devem, todos sabemos, à patologia do controlo.  Acontece que, como lembra  a Genie,  o controlo razoável pode ser  saudável. O difícil é estabelecer a linha.
Um teste do algodão é a saúde. O controlador patológico, quando detecta  um sintoma,  receia exames complementares. Isto pode parecer contraditório, mas não é: enquanto não souber se tem cancro ou está diabético, controla ( ilusão...) o desfecho. Na ansiedade económica ocorre um desvio semelhante.
Se tivermos controlo sobre a mania do controlo, caímos menos em desespero porque aceitamos a componente instável da situação. Pelo contrário, se somos patologicamente  obcecados pelo controlo, enredamo-nos no exame minucioso e sistemático de todos os perigos. Até à exaustão.

sexta-feira, 5 de julho de 2013

A imperatriz agitada


O grande Montale, no Extermínio das Águias, diz que não tem simpatia por nenhuma lei, ou seja, gostaria  que as coisas que não se fazem fossem indicadas aos homens  pela sua  consciência e que o acordo fosse universal. É uma boa  abertura para falarmos da imperatriz agitada: a ansiedade.
Se fizéssemos  ou deixássemos  de fazer,  sempre, o que a nossa consciência  dita, pouco mercado haveria para os ansiolíticos ( em alternativa, uma  banana sossega o estômago). Protestam: Então e a ansiedade provocada, por exemplo, pela doença de um filho ou pela viagem perigosa de um companheiro? Pois é, mas distingo ansiedade de angústia,  essa princesa envenenada ( que fica para outra monda).
 A ansiedade é credora das nossas acções, é uma mola que  dispara quando ficamos  conscientes de que as coisas não estão a correr bem porque  não as estamos  a fazer bem. O "bem" aqui é relativo: o assassino pode ficar ansioso  porque o tipo a quem enviou  duas ameixas  ainda respira.
Quando uma sociedade vive em sobressalto, como a nossa vive agora, isso significa que o ambiente  fica ainda mais instável, mais imprevisível,logo,  mais gerador  de anisedade. Há pessoas que me dizem:  O que quer que eu faça parece que é mal feito. Se resolvo um problema, aparecem logo mais dois".
Os ansiolíticos são bons mas destreinam-nos. Uma resposta à ansiedade, ao alcance de todos, passa pela prevenção. Vive a tua vida sem te colocares em palcos onde tenhas de agradar a senhores  impiedosos, vive  a tua vida sem que tenhas de te trair.

Estes dias quadrados parecem  dar razão a Montale, desta vez numa pequena frase que podemos dedicar aos grandes decisores " Fizemos  o nosso melhor para piorar o mundo.



quarta-feira, 3 de julho de 2013

A única coisa



    






 Na sequência da discussão anterior, o que se pode opor à perda de lei ( o nosso amor, um filho, um pai querido etc)? Tanto quanto sei hoje, misturando a experiência pessoal, a profissional e as leituras, só existe uma coisa. Uma única coisa.
Recapitulemos. As grandes perdas são  histórias de destruição natural, como as de Sebald, Arrasam planos, esperanças, sim, mas também a vontade e o quotidiano. Um pouco como um avião que nos leva para um fuso horário desconhecido, num descampado onde até as nossas mãos não parecem nossas. Basta sentar-mo-nos à mesa, à hora habitual, e olhar para  a cadeira agora vazia: jet lag demoníaco.
A rotina é uma aliada. Como nas cidades destruídas, reerguer as paredes, limpar um poço, procurar batatas velhas. Ou seja, levantar cedo, ir trabalhar, suportar  o trânsito. Não chega, essa pele fina de normalidade.
A unica coisa com potencial  equivalente à destruição é a criação. John só muito tarde percebe o que é o  grande malogro -  "não ser nada" -  quando Mary morre finalmente. A Fera na Selva  vale por uma enciclopédia de psicologia, porque mostra o axioma numa cronologia contrariada.
E o   que é criar por oposição  a perder? É pintar, escrever, ler, plantar, fazer um amigo, arranjar um amante, ter um filho, enfim, fazer de novo. Só assim a perda se integra e  ocupa o seu lugar na ordem natural das coisas.


segunda-feira, 1 de julho de 2013

Fazer-se à vida



De repente, um adulto fica a braços  com  a morte dos pais no espaço de um ano. E uma morte lenta, cativa de  recapitulações, planos, cacos soltos de esperança escorrida  como vinho na taberna. Enfim, o processo habitual de volta à arena numa praça deserta.
Contam-me um misto de recomeço com meta cortada. É  suposto continuar, tudo faz parte da lei natural, mas há qualquer coisa que não bate certo. Temos  sempre tantos planos para os nosso pais, não é? Que envelheçam bem, que sejam os melhores da hidroginástica, que não usem andarilho etc.
Ficamos mais  duros, alguns mais confiantes, outros afundam-se no relambório do que não chegou  a ser dito ( a máxima expressão da menoridade). O que é certo é que esquecemos  a forma. É que a lei natural ( eles têm de morrer) não manda que assistamos à agonia sucessiva.
Faz alguma  diferença? Faz: a dor devia ser  limpa  e espaçada. É  assim que os leões matam.

sexta-feira, 28 de junho de 2013

Da cólera



Depois  da Baía dos Porcos, Kennedy deu ordens expressas : Não quero esse tipo ao pé de mim. O tipo era o comandante-chefe da Força Aérea e  tinha garantido o sucesso da coisa. O fracasso é assim : um tipo que queremos  longe de nós, um tipo que nos prometeu tudo ou não nos deu nada, mas  falemos da cólera.
Petrarca, de novo: os motivos encontram-se sempre, as ofensas inventam-se. A  cólera alimenta-se de qualquer migalha, é  a célebre teoria da gota de água. Comparo a contenção da cólera à contenção do desejo, porque são situações  em que o tempo joga a nosso favor. Na cólera, pode salvar-nos  a vida ( e a dos outros) , no amor pode garantir-nos um prazer inesquecível.

quarta-feira, 26 de junho de 2013



L, 28 anos, casada, sem filhos, rema contra  a corrente. Ainda bem que foge à neoplasia nacional e os salmões selvagens  são bichos de respeito. Tem um emprego mas não está satisfeita. É leitora do DC e, quando ler isto, vai recordar-se da nossa última conversa. O caso dela é sobre expectativas: são boas ou más para a saúde?
No caso dela, as expectativas afectam o  processo de decisão. Isto porque L. espera muito de uma vida profissional diferente. Noutras vidas é de um divórcio que se espera o renascimento, noutras ainda é numa mudança de casa que depositamos a reviravolta.
Quando se vai caçar com calibres médios ou grandes, o primeiro dia é reservado para o zeroing. Trata-se de adaptar a arma, mesmo que já velha  conhecida, ao momento que se avizinha ( viagens, alterações de temperatura e humidade etc, tudo pode descalibrar a coisa). Começa-se a 25 jardas e depois passa-se a 100 jardas. É um bom método.
Com as expectativas é a mesma coisa. Temos um alvo, mas, entre a decisão e a execução, muita coisa pode acontecer, até o previsto, pelo que as expectativas devem ser ajustadas gradualmente.
Esperar muito de uma mudança arriscada e corajosa retira-nos  a concentração e a energia para  levá-la a cabo e  conduz-nos   a exageros e a uma mira desafinada. Até conhecemos governos que  erram assim, não é?

segunda-feira, 24 de junho de 2013

O factor Sísifo




Não vou entrar na discussão sobre a raíz neurótica-frustrada ou treinada-aprendida  dos comportamentos. Interessa-me dar uma pequena ajuda a quem precisa de alterar a forma como está a conduzir a sua vida num determinado aspecto. 
Uma boa base é perceber o que a pessoa define como factor Sísifo, ou seja, o que a pessoa entende que está a  ser um desperdício de tempo e de esforço. Isto parece evidente, mas muita gente crê que não existe relação entre o ganho e a energia despendida para o efeito.
O amor é um desses territórios. Ele não quer, mas ela insiste, rebaixa-se, cede em tudo. A crença no outro, ou na nossa superior capacidade de o moldar, obnubila o tremendo gasto de energia e o rombo que toda  a situação provoca no nosso amor-próprio. 
O desgaste que a crise provoca é outra montanha para rolar pedra. A resposta habitual é  a intensificação dos vazadouros: irritabilidade, bebida, tabaco, isolamento.Como é natural, a resposta só vai aumentar o  peso da pedra que temos de rolar montanha acima.
Sílio Itálico, tido a certa altura como  sucessor de Virgílio,  mereceu de Plínio o Novo o seguinte comentário ( sobre  o Punica): maiore cura  quam ingenio. É isto - mais transpiração do que inspiração - , numa tradução libertina, que acontece quando   ficamos cegos ao esforço inútil que dispendemos em resposta a uma necessidade não satisfeita.
O que há  a fazer é, primeiro, uma confrontação honesta com a nossa cegueira. Somos nós que nos estamos a tramar, ainda que este  seja  um  mundo de carrascos. Depois, aplicar o esforço sem sentido nas coisas que nos podem salvar. É que, ao contrário de Sísifo, não fomos castigados pelos deuses mas pelos homens, pelo que nada existe que não possa ser feito ou suportado  de outra forma.
Se não acreditam em mim, leiam Primo Levi.


domingo, 23 de junho de 2013

Dor constitucional



Petrarca considerava que  a dor, física ou emocional,  só se tornava impossível de suportar  devido à fraqueza da alma. A virtude :   suportar   a dor nunca se  alcança por sorte, mas pela  persistência. Ao contrário dos epicuristas, Petrarca pretende combater apenas  a dor, diminuí-la,   não torná-la agradável. Socorre-se muitas vezes de exemplos de homens ( e deuses...) que o conseguiram, para estabelecer como universal e ao alcance  de qualquer um conseguir vencer algumas batalhas.É aqui  que  entramos na arena.
Quando tenho alguém em sofrimento a quem conto histórias de doentes que padecem de males  piores, ouço  o habitual "Com  o  mal dos outros posso eu bem". Se der exemplos  de pessoas que suportaram  a dor.  o que ouço é um pouco o  que a Dor diz à Razão no manual de Petrarca:  " Não somos todos iguais". Nestes dias em que o sofrimento é quase  igualitário, o que mudou?
Posso estar enganado, mas noto forças em gente que tudo tinha para desistir, mas também noto um bicho diferente  acoitado no matagal. É como se algumas pessoas, trespassadas pelos factores ambientais, se estejam a deixar ir.  É como se a dor  passasse a ser constitucional.
 Não era bem isto que o amante de Laura pretendia.