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domingo, 19 de janeiro de 2014

Concretizemos então:

R., 35 anos, economista, casada, três filhos, foi seguida por mim em consulta, vive hoje em Bruxelas de onde segue o Depressão Colectiva:

 "Concretizemos então. Quando eu tinha 12 anos o meu pai foi internado no Centro de Alcoologia de Sobral Cid. Digamos que correu bem pois efectivamente deixou de beber. Ainda que fosse um processo demasiado longo para quem já estava tão cansado. Os meus irmão sairam de casa (não me recordo se antes ou se depois, penso que foi antes do internamento). E eu fiquei por lá sem qualquer estrutura de apoio. E mesmo sem os efeitos do alcool no meu pai, continuei a chegar todos os dias a casa depois da escola receosa do que podia encontrar: mais uma discussão entre os dois, nódoas negras, móveis partidos, uma síncope da minha mãe ou mais uma tentativa de suicídio? Não sei como se deve lidar com isto aos 12/13 anos. Eu comecei a parar de pensar (a tentar pelo menos). Ia para a escola, mas não ia para as aulas. Ficava sentada na rua a deixar o tempo passar. Mas faltar às aulas teve um efeito que não previ (burrice). A minha mãe foi chamada à escola porque eu estava em risco de chumbar por excesso de faltas. O regresso a casa foi mais ou menos o óbvio: grande tareia psicológica pela irresponsabilidade de não ir às aulas. Só. Como se mais nada estivesse a acontecer na minha vida, na nossa vida.

Nada como concretizar. Este pedaço destrói todas as tentativas de relativizar  a violência doméstica. Não há nada de cultural, de temporal, de social. Há, apenas, o sequestro de uma infância. E agora?
Aníbal, no seu trajecto da hispânica Cartagena até à primeira escaramuça com Cipião ( pai), nas margens do Ticino, muito teve de penar. Alpes, gelo e fome mas também humanos:  alóbrogues e outros gauleses irascíveis. Juntou-os à sua causa, arrebanhou-os. Esta mulher, como qualquer pessoa a contas com a sua infância, só tem uma hipótese:  transformar os obstáculos em apoios. A alternativa seria ficar fixada  no tempo,  imitar este homem. Como se faz? Em parte, como ela fez. Montou o acampamento, ordenou tudo lá dentro, garantiu que a paz  reinaria nos passos em volta.
O problema é que a vida tem uma dívida para com esta mulher que exibe uma notável compreensão do que lhe aconteceu quando era pequena e  frágil. Essa dívida é uma lesão crónica e ela terá de saber viver com ela, tal e qual como quando perdemos  alguém. Ou seja, aceitar que certos movimentos são dolorosos e não  parar de pensar. Não se trata de resignação, trata-se de justiça: faz tudo o que precisares sem julgar que repões o que nunca tiveste.



8 comentários:

  1. O que quer dizer exactamente "não parar de pensar"?
    Como se fica "fixado no tempo" psicologicamente?

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  2. 1) Pensas, logo existes. A R. parava de pensar como resposta-defesa a uma situação tramada; crescer sobre isso é não utilizar defesas dessas.
    2) Ui...de tantas maneiras. Do luto patológico à regressão., são muitas as negações maníacas como a do japonês. A vida não pára.

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  3. Nada mais verdadeiro, como se pode lêr nesta passagem do Discurso do Método na qual Descartes parafraseou Epicteto :
    "Tomei a decisão de me conquistar a mim próprio em vez do destino, mudando os meus desejos em vez de tentar mudar o Mundo, e habituar-me a aceitar que nada está ao nosso alcance mudar excepto os nossos pensamentos...Aqui, penso, reside o segredo dos antigos filosofos que foram capazes de se libertar da tirania dos acasos da fortuna,e assim, apesar do sofrimento e da pobreza, conseguirem rivalizar com os deuses em felicidade."

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  4. faz tudo o que precisares sem julgar que repões o que nunca tiveste

    Será assim tão ilegítimo que o caminho se faça na busca do que não se teve? Não como uma forma de compensação mas de maneira a alcançar aquilo que se sabe que são os aspectos mais fundamentais para se viver (feliz)?

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    1. boa pergunta até porque não é exactamente oposta ao que escrevi / repor...)
      a ver se amanhã faço uma suite...

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  5. Há várias formas de vivenciar e ir resolvendo situações idênticas/próximas, na mesma idade, ou ainda mais precocemente.
    De acordo com a minha vivência, as saídas poderão ser várias, as estruturas de apoio, imaginárias (uma entidade divina).. ou reais (por vezes um avô), serão sem dúvida um contributo para a forma como nos vamos "desenovelando" de todo este processo....Mas a vida vai-se processando, num contínuum, em que passamos a viver como que em situações extremas, ora frágeis, com emoções consideradas em demasia, ora aparentando "um super ego", como o FNV me "mandou" ainda esta semana quando eu acompanhava uma pessoa que me é querida na sua consulta....
    E quando durante esses períodos, na infância e adolescência, nos construímos a " resolvermo-nos frequentemente sózinhos", e ainda com disponibilidade para ajudar outros (mãe), não podendo correr o risco de nos "portar mal", para não a magoar... perturbar..., até achamos um privilégio, quando nos sentimos ajudados pelo facto de estarmos a "acompanhar" alguém que está a ser acompanhado na sua consulta.
    Sinto também ser frequente, apresentar tendência para não me "levar a sério" e andar em frente,...resolver...resolver...porque é a vida.
    Será que vivências de processos como o descrito, ou talvez mais complexos, possam vir a proporcionar características entendidas como de "super ego"?
    Uma coisa eu sei, assumo frequentemente grandes "batalhas... e projetos"... com uma auto confiança que foi crescendo...
    É (e foi) a vida....

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    1. Fiz uma interpretação errada do termo superego...ignorância a minha.
      Já clarifiquei o conceito e não se aplica à questão que faço durante a reflexão do post que coloquei....nem me atrevo a entrar por aí...!
      Toda a restante reflexão me faz sentido.

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  6. O problema, Filipe, é que a vida tem pelo menos uma dívida para com cada um de nós e eu considero, perdoe-me a falta de humildade, que é cada um de nós que terá que a reclamar sem interposta pessoa, mas com gente ao lado. O 'como' e o com 'quem' são as partes mais difíceis de conseguir, principalmente quando nos habituámos desde cedo a ver todos como iguais e, afinal, a conclusão à qual chegamos cada vez mais é que uns são mais iguais do que outros.

    De certa forma, o Filipe, terapeuta profissional, é «mais igual», o que para mim é ridículo. É nesta tecla que tenho vindo a 'bater', sem qualquer prejuízo para a sua imagem pessoal/profissional, mas antes como igual. Bloggers. Terapia. O acompanhamento do DP pela sua paciente em Bruxelas é idêntico, enquanto leitora, e sabemos que um leitor não é nunca criatura passiva.

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